De todas as distinções que podem ser feitas entre civilização e barbárie, uma das
mais adequadas é a que envolve a lei do mais forte. No estado de
natureza, o direito que regula as relações entre os homens é a arbitrariedade daquele com força suficiente pra fazer valer sua vontade. O estado de
direito, por sua vez, é um arranjo concebido para garantir um mínimo de
garantias àqueles fracos demais para se defender por si mesmos.
Nenhum
arranjo social criado com o intuito de facilitar a sobrevivência humana mediante a divisão de trabalho pode existir sem o amparo de um conjunto de
regras pré-estabelecidas a que todos devem se submeter. Independente do meio de
governo escolhido, uma coisa é certa: é duvidoso o futuro de uma sociedade que
carece de uma cultura de temperança mínima, calcada na convicção de que existem
limites à liberdade de ação humana e, junto a ela, um sistema de repressão
para quem ultrapasse certas fronteiras e outro de reparação, destinado a quem
seja prejudicado no processo.
A
civilização é, portanto, um arranjo concebido para garantir que a atos se
sucedam suas devidas consequências, noção na barbárie condicionada à capacidade
do prejudicado de fazer justiça com as próprias mãos. Qualquer um que se
pretenda civilizado entende que não pode tudo. Sabe que sua liberdade de ação está
condicionada a sua obrigação de lidar com as implicações dela e é isso que o
distingue do estado de natureza da criança em processo de preparação para a
vida em sociedade e do troglodita que usa a força para submeter os mais fracos
que ele.
GUERRA
CULTURAL
O
Ocidente se tornou, a partir da segunda metade do século XX, um gigantesco
experimento social, levado a cabo por uma elite cultural/intelectual insatisfeita
com o estado de coisas que possibilitou a essa civilização se tornar a maior e
mais próspera da história humana. Esse empreendimento está apoiado basicamente
em dois sistemas de pensamento, surgidos ainda na primeira metade do século.
O
primeiro são os escritos de Antonio Gramsci e György Lukács, intelectuais comunistas cuja maior
contribuição ao movimento foi a revisão do conceito de revolução política. Se o
marxismo clássico pregava a ruptura violenta da ordem vigente capitaneada pelas
classes produtivas assalariadas urbanas, Gramsci e Lukács perceberam que
o nível sem precedentes de riqueza criada após a Revolução Industrial
inviabilizaria o projeto: os trabalhadores estariam mais interessados em
angariar patrimônio e cuidar de suas famílias do que em colocar tudo em risco
num levante sangrento. Foi por isso que eles criaram o conceito de Revolução Cultural. Ao invés de usar as pessoas que vivem de vender a própria
força de trabalho para subverter a ordem diretamente, a ideia seria manobrar o
lumpesinato desprezado por Marx (pessoas não-produtivas e/ou que vivem às
margens da sociedade: estudantes, prostitutas, drogados, artistas, vagabundos, criminosos, loucos e
marginalizados em geral) para atacar as fundações sobre as quais ela se assenta
no Ocidente, a saber, a moral judaico-cristã, o ordenamento legal romano e a tradição filosófica helenística.
Seguindo
a mesma idéia de guerra cultural, a Escola de Frankfurt insere a segunda
fundação ao criar a Teoria Crítica, cujo principal meio de ataque à civilização
ocidental é basicamente a chantagem: usar a tolerância das sociedades mais
tolerantes da história contra elas mesmas. O foco excessivo nas contradições e
problemas sociais do Ocidente tem como objetivo incutir e explorar um
sentimento de culpa nas populações por erros e abusos inerentes a todos os arranjos humanos já surgidos na
Terra: escravidão, submissão das mulheres e perseguição a homossexuais e outras
minorias não são exclusividades do Mundo Livre, mas na guerra política mais
vale dar a entender que são e ignorar que foi justamente essa a primeira
civilização a abolir essas práticas nefastas e a dar exemplo ao restante do
mundo.
ADMIRÁVEL
MUNDO NOVO
O
bombardeio sistemático dessas ideias a partir dos centros difusores de cultura
(igrejas, universidades, redações, mídia mainstream...) iria moldar costumes e
desembocar no movimento de contracultura dos anos 60. “Make love, not war” contra
a Guerra do Vietnã, feminismo, revolução sexual, a chegada da primeira pílula
anticoncepcional ao mercado em 1960: tudo isso deu origem a um mundo hiper-
erotizado onde o sexo, antes submetido a rígidos controles sociais/morais e
restrito ao casamento, foi alçado às raias, praticamente, de necessidade
fisiológica.
O
resultado não podia ser outro: o início cada vez mais precoce da vida sexual, amparado
num estado de bem-estar social que tudo promete, só poderia incorrer na
banalização da sexualidade. As noções de responsabilidade e atos e
consequências se perdem num hopi hari libertino sem fim onde todos têm direito
à satisfação irrestrita e sem qualquer compromisso. Na tônica opressor x
oprimido que substituiu a dialética burguês x proletário, todo aquele que
procura colocar alguma ordem no caos hedonista é opressor. Como se não bastasse
o estado garantindo a todos o “direito” à contracepção, chega-se a um ponto sem
volta onde mesmo ingerir uma pílula, tomar uma injeção, colocar um preservativo
ou colar um adesivo na pele se torna um fardo intolerável e mais uma exigência
é feita: em nome da religião secular do prazer total, o aborto passa a ser um
direito.
A
GRAMA É VERDE?
Combinado
à facilidade de circulação de informação e ao acesso universal a todo tipo de
método anticoncepcional dos dias atuais, todo esse estado de coisas, transformou
o aborto, à parte qualquer consideração de ordem moral ou teológica,
numa questão civilizacional. E só é possível vislumbrar isso a partir do
momento que se entende a atividade sexual humana como um estilo de vida e uma
questão de escolha individual.
A
tendência atual do establishment cultural “progressista”
do Ocidente é tratar o exercício da sexualidade como “direito”, quando não como
“necessidade fisiológica”. A conclusão lógica é que, nesses tempos de tara
igualitária padrão welfare state,
como direito, ela deve, então, estar disponível a todos. G.K. Chesterton foi
profético quando escreveu, na Inglaterra da década de 1920, que um dia seria
necessário provar ao mundo que a grama é verde. Menos de um século depois, é
preciso apelar à biologia humana elementar para lembrar que sexo é uma atividade
exclusiva
para adultos.
É
fato que, muito por obra da mesma elite cultural firmemente empenhada em
reduzir o Ocidente a cinzas, a maturidade biológica há muito deixou de ser
requisito seguro de uma vida sexual responsável. Mas isso é só o sintoma mais
evidente da cultura que surgiu em meio a esse pandemônio lúbrico. Já houve um
tempo em que orientar, fiscalizar e controlar o comportamento dos jovens foi considerado
obrigação e regra entre os adultos. Já coube aos pais buscar meios de verter a
energia sexual proveniente da explosão hormonal característica da adolescência
para áreas produtivas (esportes, escotismo, trabalho comunitário) e cultivar
neles senso de temperança e responsabilidade até que atingissem a maturidade
emocional e psicológica imprescindíveis a uma vida sexual controlada. Hoje o que se
vê são crianças recém-inclusas na puberdade pulando etapas e assumindo
comportamentos adultos precocemente (obviamente sem arcar com as consequências
disso), negligenciados por velhos preguiçosos e narcisistas, mais preocupados
em parecer jovens e “legais” perante os filhos do que em fazer deles adultos conscientes
das responsabilidades da vida adulta.
Junte-se
a isso, a glamourização e a propaganda frenética do sexo como virtude e “saúde”
atingindo a todos indiscriminadamente, chegando inclusive ao absurdo de, por
exemplo, a banalização mais grosseira ser alçada em parlamento à condição de “patrimônio cultural”.
Associe-se a isso a especial suscetibilidade das famílias pobres e sem
estrutura a essa pregação gramscista em massa para ter como
resultado o ambiente ideal à profusão interminável de mães solteiras
adolescentes, sem qualquer tipo de condição psicológica, emocional e material
de criar e educar um ser humano. Gente sendo jogada em massa num mundo violento sem qualquer preparo, sem nenhum apoio, carentes de qualquer lastro
moral. Resultado? Crescimento exponencial da violência nos grandes centros
urbanos, jovens cada vez mais cedo cooptados pela criminalidade e, no limite,
extermínio sistemático da juventude negra e parda nas periferias. Culpa? Do
“racismo institucionalizado”, da polícia militarizada, da escravidão negra
abolida há cem anos, da desigualdade social... de qualquer coisa e qualquer um,
menos desse ambiente mefítico de promiscuidade descontrolada e irresponsável
arquitetado milimetricamente pela esquerda hedonista do século XXI. Solução? Aborto,
é claro!
CASCA
DE OVO
Antes
de tudo, uma coisa precisa ficar clara. Nenhum onanismo metafísico acerca do
momento em que se inicia a vida humana no útero tem qualquer serventia na
discussão sobre aborto, a não ser a de desviar o foco do que realmente importa:
a responsabilidade individual da mulher (e não do homem) no surgimento daquela
vida (ou amontoado de células, a depender das inclinações morais do freguês) no
seu corpo. Se a ocorrência da atividade sexual só depende da vontade dela, não
existe defesa civilizada do aborto fora da esfera do estupro (muito apesar do
fato de que, em condições normais, uma mulher vítima desse crime muito
dificilmente espere o desenvolvimento de uma gravidez antes de tomar alguma
contramedida) e de um eventual risco de vida em virtude da gestação. Aceitar o
contrário é, simplesmente, promover uma cultura onde as pessoas têm
salvo-conduto perpétuo para se abster das consequências de seus atos por
conveniência, isto é, a barbárie. Excetuada a hipótese remota de falta de
informação, qualquer mulher que se julga civilizada e com idade para ter vida
sexual tem que aceitar que, apesar da espetacular eficiência dos meios contraceptivos
modernos, a gravidez é, sim, um efeito possível desse estilo de vida. Da mesma forma
que a morte é uma possibilidade que o paraquedista (que exerce sua atividade
confiando na segurança proporcionada por seu equipamento) não pode ignorar.
No
desespero para omitir o óbvio e reforçar uma narrativa conveniente ao aborto
amplo, geral e irrestrito, os mais absurdos malabarismos retóricos são
inventados. Todos procurando ignorar a única questão que importa: a
responsabilidade da mulher em engravidar.
Primeiro,
a idéia torta de que ninguém, a não ser a própria grávida, pode opinar sobre aborto
porque isso seria ingerência alheia nas decisões dela sobre o próprio corpo. É o
mesmo que dizer que, além da vítima, ninguém mais pode exigir a punição de uma agressão,
já que isso só diz respeito ao corpo dela e ao de mais ninguém. Como se a justiça
estivesse atrelada ao desejo de reparação do agredido e não a uma série de
regras pré-estabelecidas que devem ser obedecidas por quem deseja viver em
sociedade. Seguindo esse raciocínio, se uma mulher, masoquista, é espancada por alguém com
quem mantém um relacionamento doentio (e que por isso mesmo ela não quer
denunciar, já que não quer vê-lo preso), o agressor só pode ser
submetido ao devido processo legal se ela assim o exigir, afinal ela pode fazer
o que quiser com o próprio corpo, inclusive se submeter a agressões constantes,
mesmo que isso implique em livrar um criminoso da cadeia. Assim, a decisão sobre
a punição de um sequestrador deve caber apenas à vontade do sequestrado acometido
de Síndrome de Estocolmo afinal, corpo dele, regras dele. Se ele quer continuar
como hóspede de seu algoz, este último deve sair impune. Um infectado por doença
rara e letal, desse modo, tem todo direito de desautorizar em testamento o
estudo póstumo de seu corpo, mesmo que isso signifique a morte certa para
pessoas que sejam infectadas pela mesma doença no futuro. Em sociedade, nenhum
direito é absoluto, nem o direito sobre o que fazer com o próprio corpo.
Por
falar em doença, eis que surge o mais desonesto dos argumentos da Igreja dos
Hedonistas dos Últimos Dias: o aborto é, também, questão de saúde pública.
Depois
da farsa dos “direitos reprodutivos da mulher” (como se não fosse possível
escolher entre engravidar ou não), da "cultura do estupro" (em que
estupradores precisam ser mantidos longe dos demais presos porque esse crime é
intolerável até para quem já vive na criminalidade) e do orwelliano “sou contra
o aborto, mas a favor da legalização”, o aborto como "questão de saúde
pública" não passa de mais um trambique retórico pra pautar o debate com a
consistência de uma casca de ovo. Questão de saúde pública diz respeito a
contingências onde é necessária a intervenção do estado para assegurar o bem
estar de uma população. Uma epidemia de ebola é questão de saúde pública
porque, dentro de determinado contexto, as pessoas são impotentes ante o avanço
da peste. Elas precisam do governo porque não dispõem de meios para enfrentar a
doença por si próprias e, o que é mais importante, não podem escolher entre
contrair ou não a doença. Dar o mesmo tratamento ao aborto num mundo com uma
profusão interminável de contraceptivos, numa civilização em crise devido ao
sucesso de idéias cujo objetivo precípuo é remover do indivíduo todo e qualquer
senso de consequência e onde a sexualização cada vez mais precoce passa a ser
vista como uma forma de "libertação do ser humano", é coisa de
vigarista intelectual. Gravidez não é doença, é questão de responsabilidade
individual. Da mulher.
A
defesa do aborto, excetuados os casos extremos, se resume a uma só palavra:
hedonismo. Os avanços médicos e tecnológicos (alienígenas para um observador de
há apenas três décadas atrás), aliados à mentalidade de bem-estar social que
virou regra no Mundo Livre, causaram no ocidental médio uma sensação de
conforto e segurança nunca antes sentida por seus ancestrais em nenhum momento
da história. A fome e as mortes por doenças hoje banais (gripe, varíola, sarampo,
tuberculose...) se tornaram exotismos de um passado recente que parece ter sido
há 1000 anos. Essas facilidades criaram nas pessoas o sentimento de que
prosperidade, paz, saúde e riqueza são o estado natural da humanidade. Quando
se chega nesse estágio, o próximo passo natural é a consciência de que a satisfação
irrestrita de todos os caprichos se torna “direito humano”, bandeira de defesa
da “liberdade sobre o próprio corpo” ou “questão de saúde pública”.
Se
o aborto se torna banal a ponto de um surto de gravidez irresponsável passar a
ser comparado a uma epidemia de cólera, quanto vai demorar até que se comece a
matar pessoas em estado vegetativo e idosos por simples questão de
conveniência? (eles já estão próximos da morte mesmo...) Não é difícil perceber
onde isso vai dar. Hoje são amontoados de tecido. Amanhã pesos mortos
improdutivos. Foi defendendo o nobre objetivo de oferecer uma “morte
misericordiosa” a deficientes e doentes em estado terminal que os nazistas os
esterilizaram à força e os jogaram nas primeiras câmaras de gás. A preocupação
com o mais fraco, insígnia-mor da Civilização Ocidental, vai aos poucos
desvanecendo até que só sobre uma raça de hedonistas mimados, preocupados
unicamente com o próximo prazer. No limite, o fim da civilização. O esforço na
direção de reduzir o ser humano às suas necessidades mais básicas vai acabar
com a humanidade.
Concordo em gênero, número e grau.
ResponderExcluirExelente texto.