Foi
pensando no potencial disruptivo das guerras e revoluções que Karl Marx falava
da luta de classes como motor da história. Apesar das deficiências desse modelo
para explicar os eventos humanos, não está muito longe da realidade pensar nas
convulsões sociais como pontos de inflexão na continuidade hegeliana sob a qual
o Ocidente se acostumou a interpretar a passagem do tempo.
Daí
o pesar nostálgico de Edmund Burke diante do que chamou de “fim da era da
cavalaria” ao analisar a revolução na França: a superação da época das virtudes
medievais em favor da ascensão da era da busca da satisfação pessoal, ou, nos
termos da constituição americana, da pursuit of happiness.
Dois
episódios históricos marcam essa transição de modo mais incisivo. A Revolução
de 1789 foi o primeiro golpe no edifício dos valores medievais que, bem ou mal,
tinha conseguido se arrastar até a pá de cal lançada por Gavrillo Princip
naquele julho de 1914.
Downton Abbey retrata
de maneira clara essa transição de sensibilidades que se acelerou e se tornou
mais nítida logo após a Primeira Guerra. A história mostra como esta parece ter
sido o divisor de águas entre o tempo da cavalaria de Burke e a época da busca
da felicidade pessoal. O fim da era da temperança.
Diante
de olhos modernos, o ordenamento social em Downton
é o que primeiro chama a atenção. A relutância de Matthew, o herdeiro de
mentalidade urbana crescido em Manchester, em aceitar um criado para cuidar das
próprias roupas, reflete o estranhamento que acomete quem observa o esmero apaixonado
dos criados da casa ao preparar a mesa para o café da manhã logo no primeiro momento
da série. A cena é montada com o propósito explícito de despertar essa sensação
no espectador porque foca exclusivamente no senso de urgência dos personagens,
sem dar qualquer indicação do objetivo da tarefa que eles desempenham com tanto
afinco. O sentimento que se manifesta na audiência ao descobrir a razão de todo
aquele esforço coletivo é efeito colateral do zeitgeist antropocentrista da Modernidade por excelência: o que os Crawley
têm de tão especial para merecer este tipo de tratamento?
A
razão de ser da Modernidade é a pretensa intenção de colocar a dignidade do
homem no centro das prioridades. Assim se justifica todo o esforço filosófico
empreendido pelo menos desde a Reforma no sentido de colocá-lo no lugar que o Transcendente
ocupava no ideário do medievo. A observação dos efeitos dessa mentalidade, no
entanto, leva à conclusão que ela surge mais como arcabouço retórico destinado
a glorificar e justificar a natureza egoísta e narcísica do ser humano, uma vez
que a filiação divina de toda a humanidade, preconizada pela tradição cristã,
já cumpria o papel de garantidora da dignidade da pessoa humana. “Se existissem
deuses, como suportaria eu não ser um deus?”. A frase de Nietzsche sintetiza com
perfeição o real espírito desses novos tempos.
Em
Downton, a Guerra é o catalisador
dessa mudança de mentalidade. A conversão da propriedade em enfermaria para os
soldados em recuperação como parte do esforço de guerra é o sinal mais concreto
de que ao fim do conflito “as coisas não seriam mais as mesmas”, expressão essa
repetida como um mantra. Uma marca da mudança dos tempos.
Entre
os criados o efeito mais singular dessa transição é a perturbação daquele senso
de dignidade, classe, nobreza e decoro (algumas das principais virtudes da era
da cavalaria de Burke) do qual Charles Carson, o mordomo e chefe dos outros empregados,
é o principal símbolo. Apesar de, junto com Violet Crawley, ser também uma
representação do reacionarismo (alguém que, se pudesse, pararia o tempo para
impedir as transformações sociais), Carson é alguém de uma época na qual a
contenção dos impulsos e a auto-moderação ainda não eram consideradas categorias
de “opressão burguesa”.
Como
sempre é de se esperar, nos jovens o impacto da mudança é amplificado. E em
ninguém isso é mais visível que em Daisy, a dócil assistente de cozinha de Downton. O contato com Sarah Bunting, a
professora de mentalidade revolucionária, trazida à história por um Tom Branson
já em vias de adaptação à vida aristocrática, opera mudanças drásticas na
personalidade pacata da protegida de Beryl Patmore.
Ao
mesmo tempo em que a faz perceber o próprio potencial e cria nela o incentivo
para desenvolvê-lo, Bunting inocula em Daisy o germe da era da busca da
satisfação pessoal. Antes sem qualquer pretensão além de ocupar um dia o posto
de sua preceptora, Daisy agora passa a sonhar. A professora é a representação
exata do revolucionário utópico: alguém de boas intenções, sem dúvida, mas cujo
idealismo e fé na nobreza de sua causa às vezes a fazem flertar com o abismo.
Um exemplo é o episódio do jantar com os exilados russos em Downton, no qual
ela provoca uma reação intempestiva do sempre sereno Robert Crawley. Sua
insensibilidade diante da situação dos nobres fugidos da revolução bolchevique é
o retrato da mentalidade revolucionária que não enxerga indivíduos, apenas
classes em guerra perpétua. A cosmovisão que ocasiona o comentário inoportuno
num jantar de gala em Yorkshire é a mesma que motiva o fuzilamento de uma
família inteira num porão em Ecaterimburgo.
Em
sua antiga condição de simples cozinheira, a perspectiva de casar e constituir
família talvez fosse suficiente para satisfazer Daisy. Agora, o mundo novo que
se descortina diante dela traz consigo expectativas que talvez nunca sejam
atingidas, um aspecto geralmente ignorado quando se fala das maravilhas do fim
da organização social aristocrática.
Às
óbvias vantagens de um sistema de mobilidade social baseado no mérito pessoal,
naturalmente se seguem os efeitos colaterais decorrentes da natureza tipicamente
insatisfeita da condição humana: para que novos desejos surjam, basta que os
primeiros sejam atendidos. E é isso que está na gênese de alguns dos grandes
problemas contemporâneos da humanidade, como a tendência generalizada à
depressão e ao suicídio, uma das coisas que a Modernidade foi mais bem sucedida
em democratizar. Se o Transcendente sempre fora a bóia em que os homens se
agarravam nas épocas de privação material, justo quando se consegue um nível de
produção que, em tese, permitiria à humanidade prescindir dessa tutela, é
quando ela se torna mais necessária.
A
origem desse mal estar na civilização é a tensão entre expectativa e realidade,
amplificada por uma ordem montada com o intuito de fazer tudo orbitar em torno
das demandas pessoais. Quando isso é levado às últimas consequências, se perde
a dimensão do dever na experiência humana, em detrimento da satisfação
meramente animal das vontades individuais.
Só
numa época governada por esse tipo de sentimento é que se pode aventar a
perspectiva de moer viva uma criança em pleno ventre materno em favor da
conveniência de eximir os pais das responsabilidades de criá-la.
Só
num tempo em que o prazer pessoal é alçado à condição de evangelho é que se
pode admitir que um homem que sente atração sexual por crianças na primeira
infância possa não ser um animal cujos impulsos devam ser severamente
restringidos por todos os meios possíveis, mas um pobre doente que precisa de
cuidado e tratamento.
Só
numa sociedade ególatra ao ponto de as pessoas pressuporem estar no centro do
pensamento alheio que a banalização arbitrária de qualquer opinião desagradável
como “discurso de ódio” poderia florescer. Afinal, como sentir ódio de algo ou
alguém cuja mera existência se ignora? A sociedade moderna matou o desprezo e a
indiferença.
Quando
se pensa na posição central da monarquia e da aristocracia unicamente em termos
de “justiça social”, se ignora como essas instituições, ao representar uma
alegoria da centralidade de Deus no imaginário coletivo, atuam como limitadora das
pretensões humanas. A consciência de Robert de se entender não como dono
da propriedade, mas como seu guardião, traz consigo a idéia de
que, apesar de privilegiado, ele deve obrigações a quem lhe legou o comando de Downton, parte daquele compromisso com
os mortos, os vivos e os que ainda hão de nascer, de que Burke falava.
É sob essa perspectiva que se justificam os
maus bocados que Edith teve de enfrentar ao ter de esconder a filha nascida
fora do casamento, o escândalo de Mary com o embaixador turco na primeira
temporada, bem como a tentativa de chantagem que sofreu de uma ex-criada de
Downton que a flagrou num hotel com um homem com quem não era casada: é
justamente por serem privilegiadas e por ocuparem a posição que ocupam que são
elas as primeiras a ter de dar exemplo. É o preço a se pagar pela nobreza.
Se
o enfraquecimento do senso de temperança foi o principal efeito colateral da
Modernidade sobre o homem comum, em relação às elites foi justamente a transmutação
do espírito de obrigação com a ordem social (que, ao mesmo tempo que
justificava os privilégios, impunha sobre elas a obrigação de dar exemplo) num
ânimo de experimentação que, no fim das contas, é a expressão de uma revolta
luciférica contra a realidade, materializada no desejo manifesto de reformular
totalmente a sociedade a partir de idéias abstratas. Eis a origem de um
fenômeno tão típico desses tempos: as elites “progressistas”.
A
constatação de Adam Smith da existência de um sistema moral mais rígido para os
pobres, em comparação com um mais flexível para os ricos, é a materialização do
fato de que, por não disporem da teia de garantias materiais de que os bem-nascidos
dispõem, o melhor pra eles, diante da incerteza e da desordem do mundo é se
apegar ao certo e evitar inventar muito. Desde sempre essa era a sensibilidade
dominante também entre os patrícios, não por não poderem experimentar, mas pelo
senso de dever de quem se sabe responsável pelos rumos da sociedade.
Com
o advento da era do “homem como medida de todas as coisas”, a prudência de
Robert e o zelo de Violet pelas tradições deram lugar à insensatez culpada de
Sybil e ao vanguardismo altruísta de Isobel. Essas últimas, associadas à
mentalidade utópica e à sede de poder oportunista de Sarah, direcionaram o vetor
resultante no sentido da aristocracia irresponsável de hoje, desconectada dos
valores e sentimentos do homem comum, cuja única preocupação com a sociedade é
usá-la como laboratório de experimento de reengenharia social.
A
fé no futuro e o culto do prazer que transbordam da letra de Tempos Modernos de Lulu Santos representam
com perfeição o espírito da Modernidade. “Eu
vejo a vida melhor no futuro (...) / Repleta de toda satisfação que se tem
direito do firmamento ao chão”. A prevalência do bem-estar pessoal sobre o senso
de dever trouxe a humanidade ao tempo que G. K. Chesterton receava, em que se
precisaria discutir a cor da grama. A própria estrutura da realidade está sendo
atacada, justamente pelas pessoas sobre cujos ombros sempre repousou a obrigação
de ser o farol por onde a humanidade deve se guiar.
Foi
Michel Houellebcq, em seu livro Submissão,
que detectou a maior ameaça que pode se
erguer de dentro do fosso intransponível que se abriu entre os valores do homem
comum e os da aristocracia pós-cristã e neoiluminista do Ocidente, completamente
indiferente ao senso de compromisso com a ordem social que sempre caracterizou suas
análogas pré-modernas: “Eu percebia
claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a
população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, deveria
necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível”.
Muito bom o artigo. Quem escreveu? Não achei a autoria.
ResponderExcluirA autoria é minha mesmo, como dos demais textos do blog. Obrigado pela visita.
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