domingo, 15 de abril de 2018

Guerra Irregular no Rio de Janeiro



“Duzentos mil soldados americanos em solo indefinidamente, para proteger e apoiar um número igual de médicos e professores do ensino básico.”
“Isso não vai acontecer. O que mais faria diferença?”
“Reiniciar. Varrer Raqqah do mapa.”

          
                O diálogo se passa no primeiro episódio da quinta temporada de Homeland. Um soldado de um grupo das forças especiais americanas atuando na guerra civil síria explica a um burocrata o que os governos teimam em ignorar: a única forma de resolver um conflito assimétrico sem recorrer ao genocídio é preenchendo o vácuo de poder na região em questão.
            Conflito assimétrico, ou guerra de quarta geração (4GW), é uma modalidade de combate caracterizada pelo desequilíbrio dos meios militares entre as partes em contenda. É travado entre exércitos estatais e facções paramilitares. Apesar de provavelmente ser o mais antigo meio de guerra da história, ganhou impulso durante a Guerra Fria, quando os EUA e a URSS, de modo a evitar um possível embate nuclear, equipavam e apoiavam grupos insurgentes para combater, “por procuração”, os exércitos da superpotência rival. Os exemplos mais famosos são a guerra civil vietnamita e a resistência afegã à invasão soviética.
            Devido a seu caráter não convencional, é o meio disponível a quem se propõe a desafiar a autoridade do Estado. A carnificina das duas grandes guerras, a possibilidade de uma hecatombe nuclear e a grande influência da opinião pública nas sociedades ocidentais criaram um cenário em que os governos passaram a evitar o máximo possível uma confrontação militar direta. Por isso a 4GW é frequentemente chamada de modalidade de “guerra do futuro”. É o modus operandi dos rebeldes e guerrilheiros. E do crime organizado nas favelas.
            Essa é a natureza do problema de segurança pública pelo qual passa o Rio de Janeiro. Mesmo que criminalidade urbana fora de controle não seja exclusividade desse estado (é apenas o 15º em homicídios por armas de fogo, de acordo com o Mapa da Violência de 2016), é lá que o crescimento desordenado das favelas criou zonas liberadas onde floresceram estados paralelos sob o controle dos senhores da guerra locais, sejam narcotraficantes, sejam milicianos.
            A topografia irregular da favela e a natureza errática do inimigo tornam pouco efetivo o emprego de forças treinadas para o combate convencional (como o contingente regular do exército) na linha de frente do conflito. É nesse contexto que se fazem necessárias as forças especiais, cujo treinamento se foca em táticas de guerra assimétrica. Especializadas em insurgência, guerrilha e terrorismo, essas unidades são responsáveis pelo ataque direto ao inimigo em operações cirúrgicas como as operações de busca e destruição do exército americano no Vietnã. Para esse fim o estado brasileiro dispõe do Esquadrão Fantasma, subordinado ao Comando de Operações Especiais do Exército Brasileiro e dos BOPE’s, grupos de elite sob o comando das polícias militares estaduais.
            A divisão das favelas maiores em setores facilitaria a ação dos grupos especiais, que poderiam se concentrar em um inimigo por vez. Eliminados os elementos hostis de determinada subdivisão, seriam, então, empregadas as forças regulares para atuar na retaguarda, se concentrando na ocupação do espaço, preenchendo o vácuo de poder. Os batalhões de engenharia do exército procederiam em seguida com as necessárias reformas urbanísticas, alargando ruas e espaçando residências com o objetivo de diminuir as possibilidades de infiltração e homizio da bandidagem em meio à população local. Com o setor devidamente pacificado e controlado pelo exército, entrariam em ação os médicos, professores e assistentes sociais.
            É aí que se encontra o ponto fulcral da estratégia do estado para vencer a criminalidade organizada. O apoio da população é a diferença entre vitória e derrota num combate irregular. Mesmo as forças de repressão e manutenção da lei e da ordem cumprindo com perfeição suas funções, todo o esforço se perde se houver hostilidade dos residentes locais a elas. Daí a importância do estado impor sua narrativa dos fatos, fazendo a opinião pública enxergar que os vilões são os traficantes e milicianos e não os soldados e policiais.
            Haverá, óbvio, quem pregue o contrário. Há setores da extrema esquerda, abundantes em ONG’s de “direitos humanos”, universidades e redações, firmemente comprometidos com o fim da Civilização Ocidental e que vêem no bandido um revolucionário em estado bruto. Apesar de minoritários na sociedade e eleitoralmente irrelevantes, são muito perigosos porque controlam os meios de comunicação de massa e, por isso, geralmente impõem a narrativa dos fatos. Assim sendo, nenhum enfrentamento militar do tráfico terá efeito sem uma assessoria de comunicação para rebater em tempo real as mentiras e manipulações e fazer frente à narrativa fraudulenta dos agitadores da mídia de massa.
            De tudo isso, sem dúvida o mais importante e urgente é o aspecto legal do problema. Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (um órgão sem poder legislativo, portanto) criou as audiências de custódia para garantir que presos capturados em flagrante possam ser soltos em até 24h. Os defensores veem na medida um meio tanto de reduzir a superpopulação do sistema carcerário brasileiro como de impedir a prisão “desnecessária” de criminosos de “menor potencial ofensivo”. O primeiro argumento é típico de quem mora em condomínio fortificado, anda com segurança armado e circula de carro blindado: pra quê construir mais prisões quando podemos simplesmente soltar os bandidos? O segundo não resiste à mera exposição dos fatos. Como se não bastasse simplesmente liberar criminosos pegos em flagrante, a lei de execuções penais ainda estabelece que os poucos idiotas que conseguem ser presos praticando crimes comuns só precisam ficar 1/6 da pena atrás das grades. Para crimes hediondos, 40% do tempo de condenação.
A raiz ideológica do aparato penal brasileiro, fortemente influenciado pelo iluminismo francês, é a ideia rousseauniana do bom selvagem. Sendo o homem naturalmente bom, ele não pode assumir a culpa pelos próprios crimes. É a sociedade injusta que o corrompe, razão pela qual ele precisa ser “ressocializado” e não punido. A cadeia deixa de ser um local para isolar um elemento nocivo à ordem social para se tornar uma assistência técnica de gente. Não é o bandido que deve mudar, mas a sociedade que o levou a assumir esse “estilo de vida”.
Qualquer estratégia diferente de tratar as favelas como países sob ocupação está fadada ao fracasso. As absurdas regras de engajamento, que praticamente transformam os soldados em alvos, a curta duração da operação e uma legislação penal excessivamente branda, cujo único objetivo é dificultar o trabalho das forças de segurança, apenas evidencia o caráter político da intervenção: um modo de desviar a atenção da opinião pública do fracasso do presidente em passar a reforma da previdência no congresso. Mandatos de busca coletivos são imprescindíveis pra restringir a capacidade de fuga dos marginais. O tempo para se conseguir de um juiz um mandato de busca individual é com o que conta cada traficante para passar sempre de uma casa a outra. Argumentar que isso viola os direitos dos moradores é ignorar que uma favela sob o comando de gangues equipadas com armamento militar é a própria definição de zona de guerra. Se é ruim ter a própria casa invadida de vez em quando, muito pior é viver sob o arbítrio de psicopatas fortemente armados.





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