Na
língua inglesa o pronome “eu” é o único grafado em maiúscula em qualquer parte
do texto, independentemente se sucede o ponto ou não. Por trás do que parece
uma simples curiosidade se esconde uma razão bem mais profunda, que simboliza
uma mudança sem paralelo na história da humanidade: a primeira pessoa sempre em
maiúscula é uma marca, forjada na linguagem, do triunfo de uma visão de mundo
cujo emblema é a marginalização do aspecto transcendente da existência em favor
do culto pagão ao indivíduo, de modo a fazer deste o centro e a medida de todas
as coisas. A única outra situação em que se admite pronomes escritos
em maiúsculas é quando se referem diretamente ao próprio Deus cristão (Seu,
Ele...)
Bem
mais profundo e esclarecedor que a dissensão político-ideológica entre esquerda
e direita, o cisma filosófico entre antropocentrismo e teocentrismo,
simbolizado pela discussão sobre o emprego dos pronomes no parágrafo anterior,
é o que realmente está na origem do mundo moderno.
O
conflito entre direita e esquerda remete à Revolução de 1789, na qual duas
facções disputaram a sucessão de poder após a queda da monarquia na França.
Apesar de situados em campos opostos, a diferença entre girondinos e jacobinos
não era de fins, mas de método. O sentimento que impulsionava a ambos era o
mesmo: a rejeição incondicional ao ideário teocêntrico medieval em que a
posição central de Deus na vida do homem comum, refletida no poder da
Aristocracia, da Monarquia e da Igreja, relegava o próprio indivíduo a um
segundo plano. Tanto um grupo quanto outro se lançou contra o Anciént Regime,
em favor da instituição da República. A diferença era que os jacobinos tinham
mais pressa e menos escrúpulos.
O
esteio filosófico do qual partiram os revolucionários franceses é a ideologia
do Progresso, cujo cerne é a crença de que todos os dias e de todas as formas o
mundo fica, necessariamente, melhor. A pulsão doentia de romper definitivamente
com o passado, refletida na frase de um membro da Convenção Nacional logo após
a decisão pela decapitação de Luís XVI, em que ele compara a revolução à
chegada numa ilha, onde os barcos são todos queimados, é a profissão de fé
moderna no Progresso. Como a história só se move pra frente, todas as instituições,
tradições, convenções e sentimentos do passado devem dar lugar ao que o futuro
traz.
Logo,
só faz sentido falar em esquerda e direita num contexto em que a rejeição (ou
pelo menos a relegação a um plano periférico) do aspecto transcendente da vida
humana é ponto pacificado. Por isso, apesar das enormes divergências (em sua
quase totalidade referentes ao aspecto material da existência), ambos conservam
em comum a devoção fervorosa à Modernidade e à ideologia do Progresso e, com
ela, uma disposição indiferente (no mínimo) em relação aos valores
civilizacionais que estão na base do poder do Ocidente.
E
é aí que se chocam pensamentos tão antagônicos quanto os de Ayn Rand e Karl
Marx, exemplos didáticos dos extremos do espectro político que entrou em vigor
após a Queda da Bastilha. A primeira, ícone do liberalismo, é uma fanática das
liberdades individuais (principalmente a econômica). O segundo, pai do
comunismo, crê no sacrifício daquelas como a melhor forma de estabelecer a
plenitude material. Mais uma vez, a divergência aqui é de método, já que o fim
é o mesmo: garantir a glória da matéria sobre o espírito.
Acima
das discordâncias irreconciliáveis em sobre como recriar o Éden na Terra, os
dois estão juntos na veneração da Modernidade como Deus ex machina da
humanidade e na fé inabalável no Progresso, na razão humana e no sentido da
história. O discurso de John Galt na terceira parte de A Revolta de Atlas, no
qual proclama a independência da elite de tecnocratas que lidera em relação às
amarras estatais da sociedade que a história descreve, é uma ode ao fanatismo
individual-racionalista típico do iluminismo francês. O que sai da boca de Galt
poderia muito bem brotar da pena de Voltaire ou de um discurso de Thomas Paine.
A crença no mito do Bom Selvagem rousseaniano (a consequência lógica de negar a
doutrina cristã do pecado original, o que Rand faz histericamente), a
glorificação cega do homem, a egolatria desmesurada pintada com cores
românticas, a rejeição total da religião como uma fonte de atraso a ser
superada (ela tacha religiosos de “místicos do espírito”, em contraposição aos
burocratas estatais, os “místicos dos músculos”) e a fé inabalável no futuro
são aspectos recorrentes também na cosmovisão marxista. Tanto quanto o Novo
Homem soviético, os heróis de Ayn Rand são uma variante do Übermensch
nietzscheano: o além-homem amoral, niilista, abnegado em nome da causa. Um
monolito de vontade de potência, de costas ao passado, mirando unicamente e,
sempre, o futuro.
Na
contramão dessa visão de mundo, Edmund Burke se notabilizou por ser o mais
eloquente a chamar atenção para os perigos de confiar cegamente na razão humana
e romper definitivamente com o que passou pelo teste do tempo em prol do
nascimento de um futuro perfeito, de um mundo novo construído unicamente por
mãos humanas. Mais uma vez, a diferença entre liberais e comunistas,
individualistas e coletivistas, não são os fins, mas os meios.
O
que os impele é o propósito de trazer a redenção humana, que a tradição
filosófica agostiniana reservava à Cidade de Deus, para o plano da imanência,
seja do aqui e agora, seja do porvir, sob a forma da promessa de uma
prosperidade material sem precedentes, a qual seria suficiente para sanar todos
os males da condição humana. Isso fica claro no trecho do discurso de John
Galt: “O objetivo da vida do homem, dizem ambos [se referindo aos “místicos dos
músculos” e aos “místicos do espírito”] é se tornar um zumbi abjeto [...] Sua
recompensa, dizem os místicos do espírito, lhe será dada após a morte. Sua
recompensa, dizem os místicos dos músculos, será dada aqui mesmo na Terra – a
seus bisnetos.”.
Daí
a crença de que a salvação humana não só é possível neste vale de lágrimas
pós-Éden como depende da configuração dos meios de produção material em vigor
na sociedade. Pela quarta vez no texto, divergência de métodos, não de fins.
Vale observar mais de perto a alocução de Galt no trecho acima: a discussão não
é acerca da possibilidade de recompensa na Terra, mas do “tempo” em que ela
chega: para os “místicos do espírito” (isto é, os caudatários da ordem pré –
revolucionária) no além, no supratempo para além da história material. Para os
sectários do Progresso aqui mesmo. Os “místicos dos músculos” no futuro, os
místicos da matéria, logo ali.
Daí
a concluir que todos os aspectos da existência humana têm origem exclusiva das
relações de produção material é um pulo. A idéia marxista de que a
infraestrutura (os meios e relações de produção) determina a superestrutura
(cultura, religião, leis, artes...) é comum a todo espectro que vai do mais
empedernido defensor do controle estatal da economia ao mais delirante
anarquista defensor do livre mercado. Sem atentar pra isso não é possível
entender o tão pouco apreço pelo legado cultural da civilização judaico-cristã
(novamente, pra dizer o mínimo) característico dos progressistas, seja de
direita, seja de esquerda.
É
exatamente aí que se desenha o real cisma político contemporâneo, o que
realmente explica as coisas como são. Por mais que divirjam entre si, nada é
mais ofensivo às ideologias comuns aos matizes de materialismo progressista que
a visão de mundo conservadora. Os conservadores são os herdeiros da tradição
filosófica medieval, que reconhece a prioridade da Transcendência ante a
imanência, o que os leva, naturalmente, a se contrapor frontalmente à raison
d’être da Modernidade, a exaltação do físico em detrimento do metafísico. De
maneira clara, o que define o Conservadorismo, antes de qualquer coisa, é a
descrença na Modernidade e na ideologia do Progresso, as bases do pensamento
progressista.
Progressista
é quem professa a religião civil do Progresso. Todos os que crêem, de uma forma
ou de outra, que a redenção humana é possível no plano da Cidade dos Homens. O
conservador, por sua vez, entende que o plano material não passa de um vale de
lágrimas, passível de melhora pela ação do intelecto humano, é claro, mas
carente da redenção espiritual que só se consegue no Plano Divino, na Cidade de
Deus. Assim sendo, a distinção entre direita e esquerda só dá conta de abarcar
as variações de progressismo, de modo que o cisma real é o que contrapõe os
adeptos dessa ideologia aos herdeiros da tradição filosófica judaico-cristã.
Em
virtude da rejeição à violência revolucionária, à compreensão da desigualdade
(desde que não perante a Lei) como algo natural à condição humana e à percepção
da liberdade individual como algo de primeira importância (mas, como tudo no
conservadorismo, sem assumir o caráter de dogma incontestável) é usual a
confusão do Conservadorismo como mais uma doutrina no espectro da direita
política.
Diferentemente
do liberalismo e do comunismo, a visão de mundo conservadora não é uma
ideologia porque rejeita o impulso de moldar a realidade objetiva a um conjunto
de valores e idéias. Por ser, ao invés disso, uma forma de ver o mundo, propõe
exatamente o contrário. Enquanto, grosso modo, o liberalismo vê no aumento da
liberdade a solução para todos os problemas humanos, para o comunismo o remédio
é a igualdade. Ambas essas ideologias padecem do mal típico da modernidade: o problema
do leito de Procrusto, o anfitrião que cortava os membros ou esticava o corpo
dos hóspedes a fim de ficarem no tamanho exato da cama que oferecia.
Sem essa distinção, surge a aberração
oportunista do “centro” ou da “terceira via”, onde geralmente se escondem os
trambiqueiros intelectuais que entendem a importância da economia de mercado
(característica associada à direita política) ao mesmo tempo em que rejeitam a
tradição cultural judaico-cristã, como todo bom revolucionário. Por abraçarem
idéias tanto da direita quanto da esquerda, se dizem “centristas” e se colocam
acima do debate, pairando por cima dos “extremos”, sem perceber que essa tática
de afetar isenção é só mais nova variante daquela velha prepotência elitista,
típica do iluminismo francês, de quem se acha tão acima da canaille que nem
precisa adotar posição. Uma roupagem très chic pra disfarçar os sectários do
progresso, que trocaram a ética judaico-cristã pela crença tola no sentido da
história e pelo cientificismo mais barato.
É
por se ignorar o cisma essencial entre conservadorismo e progressismo que
fenômenos típicos da era pós - Guerra Fria como a burocracia estatal da UE, a
ala moderada do Partido Democrata americano, a Social-Democracia e o Socialismo
Europeu, enfim, liberais materialistas de toda ordem, podem, confortavelmente,
se encaixar no “centro” e posar como desinteressados portadores da razão,
enquanto impulsionam uma agenda política e social cujo fim último é, como
admitiu abertamente Barack Obama, transformar fundamentalmente a Civilização
Ocidental de cima pra baixo.
A
mesma Modernidade que trouxe o capitalismo, as liberdades individuais, a
produção em profusão, a redução da miséria a índices relativamente irrelevantes
e a democracia, ao libertar o ser humano dos escrúpulos morais que a ética
judaico-cristã impõe, abriu a caixa de Pandora das ideologias totalitárias.
Muito antes das divergências que as colocam em lados opostos, elas compartilham
a rejeição ao ideário filosófico medieval e à tradição cultural ocidental,
logo, à essência do pensamento conservador em si. À “morte” de Deus e ao
controle sobre a natureza se seguem, naturalmente, as câmaras de gás, os campos
de reeducação pelo trabalho, os gulag e o aborto de bebês com síndrome de Down,
afinal sem o olhar reprovador de uma Entidade vigilante, quanto mais o homem
controla a natureza, menos se controla. Se o mundo material tivesse salvação,
só o Conservadorismo salvaria o mundo.
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