domingo, 17 de fevereiro de 2019

O Cisma Real


Na língua inglesa o pronome “eu” é o único grafado em maiúscula em qualquer parte do texto, independentemente se sucede o ponto ou não. Por trás do que parece uma simples curiosidade se esconde uma razão bem mais profunda, que simboliza uma mudança sem paralelo na história da humanidade: a primeira pessoa sempre em maiúscula é uma marca, forjada na linguagem, do triunfo de uma visão de mundo cujo emblema é a marginalização do aspecto transcendente da existência em favor do culto pagão ao indivíduo, de modo a fazer deste o centro e a medida de todas as coisas. A única outra situação em que se admite pronomes escritos em maiúsculas é quando se referem diretamente ao próprio Deus cristão (Seu, Ele...)
Bem mais profundo e esclarecedor que a dissensão político-ideológica entre esquerda e direita, o cisma filosófico entre antropocentrismo e teocentrismo, simbolizado pela discussão sobre o emprego dos pronomes no parágrafo anterior, é o que realmente está na origem do mundo moderno. 
O conflito entre direita e esquerda remete à Revolução de 1789, na qual duas facções disputaram a sucessão de poder após a queda da monarquia na França. Apesar de situados em campos opostos, a diferença entre girondinos e jacobinos não era de fins, mas de método. O sentimento que impulsionava a ambos era o mesmo: a rejeição incondicional ao ideário teocêntrico medieval em que a posição central de Deus na vida do homem comum, refletida no poder da Aristocracia, da Monarquia e da Igreja, relegava o próprio indivíduo a um segundo plano. Tanto um grupo quanto outro se lançou contra o Anciént Regime, em favor da instituição da República. A diferença era que os jacobinos tinham mais pressa e menos escrúpulos.
O esteio filosófico do qual partiram os revolucionários franceses é a ideologia do Progresso, cujo cerne é a crença de que todos os dias e de todas as formas o mundo fica, necessariamente, melhor. A pulsão doentia de romper definitivamente com o passado, refletida na frase de um membro da Convenção Nacional logo após a decisão pela decapitação de Luís XVI, em que ele compara a revolução à chegada numa ilha, onde os barcos são todos queimados, é a profissão de fé moderna no Progresso. Como a história só se move pra frente, todas as instituições, tradições, convenções e sentimentos do passado devem dar lugar ao que o futuro traz.
Logo, só faz sentido falar em esquerda e direita num contexto em que a rejeição (ou pelo menos a relegação a um plano periférico) do aspecto transcendente da vida humana é ponto pacificado. Por isso, apesar das enormes divergências (em sua quase totalidade referentes ao aspecto material da existência), ambos conservam em comum a devoção fervorosa à Modernidade e à ideologia do Progresso e, com ela, uma disposição indiferente (no mínimo) em relação aos valores civilizacionais que estão na base do poder do Ocidente.
E é aí que se chocam pensamentos tão antagônicos quanto os de Ayn Rand e Karl Marx, exemplos didáticos dos extremos do espectro político que entrou em vigor após a Queda da Bastilha. A primeira, ícone do liberalismo, é uma fanática das liberdades individuais (principalmente a econômica). O segundo, pai do comunismo, crê no sacrifício daquelas como a melhor forma de estabelecer a plenitude material. Mais uma vez, a divergência aqui é de método, já que o fim é o mesmo: garantir a glória da matéria sobre o espírito.
Acima das discordâncias irreconciliáveis em sobre como recriar o Éden na Terra, os dois estão juntos na veneração da Modernidade como Deus ex machina da humanidade e na fé inabalável no Progresso, na razão humana e no sentido da história. O discurso de John Galt na terceira parte de A Revolta de Atlas, no qual proclama a independência da elite de tecnocratas que lidera em relação às amarras estatais da sociedade que a história descreve, é uma ode ao fanatismo individual-racionalista típico do iluminismo francês. O que sai da boca de Galt poderia muito bem brotar da pena de Voltaire ou de um discurso de Thomas Paine. A crença no mito do Bom Selvagem rousseaniano (a consequência lógica de negar a doutrina cristã do pecado original, o que Rand faz histericamente), a glorificação cega do homem, a egolatria desmesurada pintada com cores românticas, a rejeição total da religião como uma fonte de atraso a ser superada (ela tacha religiosos de “místicos do espírito”, em contraposição aos burocratas estatais, os “místicos dos músculos”) e a fé inabalável no futuro são aspectos recorrentes também na cosmovisão marxista. Tanto quanto o Novo Homem soviético, os heróis de Ayn Rand são uma variante do Übermensch nietzscheano: o além-homem amoral, niilista, abnegado em nome da causa. Um monolito de vontade de potência, de costas ao passado, mirando unicamente e, sempre, o futuro.
Na contramão dessa visão de mundo, Edmund Burke se notabilizou por ser o mais eloquente a chamar atenção para os perigos de confiar cegamente na razão humana e romper definitivamente com o que passou pelo teste do tempo em prol do nascimento de um futuro perfeito, de um mundo novo construído unicamente por mãos humanas. Mais uma vez, a diferença entre liberais e comunistas, individualistas e coletivistas, não são os fins, mas os meios.
O que os impele é o propósito de trazer a redenção humana, que a tradição filosófica agostiniana reservava à Cidade de Deus, para o plano da imanência, seja do aqui e agora, seja do porvir, sob a forma da promessa de uma prosperidade material sem precedentes, a qual seria suficiente para sanar todos os males da condição humana. Isso fica claro no trecho do discurso de John Galt: “O objetivo da vida do homem, dizem ambos [se referindo aos “místicos dos músculos” e aos “místicos do espírito”] é se tornar um zumbi abjeto [...] Sua recompensa, dizem os místicos do espírito, lhe será dada após a morte. Sua recompensa, dizem os místicos dos músculos, será dada aqui mesmo na Terra – a seus bisnetos.”.
Daí a crença de que a salvação humana não só é possível neste vale de lágrimas pós-Éden como depende da configuração dos meios de produção material em vigor na sociedade. Pela quarta vez no texto, divergência de métodos, não de fins. Vale observar mais de perto a alocução de Galt no trecho acima: a discussão não é acerca da possibilidade de recompensa na Terra, mas do “tempo” em que ela chega: para os “místicos do espírito” (isto é, os caudatários da ordem pré – revolucionária) no além, no supratempo para além da história material. Para os sectários do Progresso aqui mesmo. Os “místicos dos músculos” no futuro, os místicos da matéria, logo ali.
Daí a concluir que todos os aspectos da existência humana têm origem exclusiva das relações de produção material é um pulo. A idéia marxista de que a infraestrutura (os meios e relações de produção) determina a superestrutura (cultura, religião, leis, artes...) é comum a todo espectro que vai do mais empedernido defensor do controle estatal da economia ao mais delirante anarquista defensor do livre mercado. Sem atentar pra isso não é possível entender o tão pouco apreço pelo legado cultural da civilização judaico-cristã (novamente, pra dizer o mínimo) característico dos progressistas, seja de direita, seja de esquerda.
É exatamente aí que se desenha o real cisma político contemporâneo, o que realmente explica as coisas como são. Por mais que divirjam entre si, nada é mais ofensivo às ideologias comuns aos matizes de materialismo progressista que a visão de mundo conservadora. Os conservadores são os herdeiros da tradição filosófica medieval, que reconhece a prioridade da Transcendência ante a imanência, o que os leva, naturalmente, a se contrapor frontalmente à raison d’être da Modernidade, a exaltação do físico em detrimento do metafísico. De maneira clara, o que define o Conservadorismo, antes de qualquer coisa, é a descrença na Modernidade e na ideologia do Progresso, as bases do pensamento progressista.
Progressista é quem professa a religião civil do Progresso. Todos os que crêem, de uma forma ou de outra, que a redenção humana é possível no plano da Cidade dos Homens. O conservador, por sua vez, entende que o plano material não passa de um vale de lágrimas, passível de melhora pela ação do intelecto humano, é claro, mas carente da redenção espiritual que só se consegue no Plano Divino, na Cidade de Deus. Assim sendo, a distinção entre direita e esquerda só dá conta de abarcar as variações de progressismo, de modo que o cisma real é o que contrapõe os adeptos dessa ideologia aos herdeiros da tradição filosófica judaico-cristã.
Em virtude da rejeição à violência revolucionária, à compreensão da desigualdade (desde que não perante a Lei) como algo natural à condição humana e à percepção da liberdade individual como algo de primeira importância (mas, como tudo no conservadorismo, sem assumir o caráter de dogma incontestável) é usual a confusão do Conservadorismo como mais uma doutrina no espectro da direita política.
Diferentemente do liberalismo e do comunismo, a visão de mundo conservadora não é uma ideologia porque rejeita o impulso de moldar a realidade objetiva a um conjunto de valores e idéias. Por ser, ao invés disso, uma forma de ver o mundo, propõe exatamente o contrário. Enquanto, grosso modo, o liberalismo vê no aumento da liberdade a solução para todos os problemas humanos, para o comunismo o remédio é a igualdade. Ambas essas ideologias padecem do mal típico da modernidade: o problema do leito de Procrusto, o anfitrião que cortava os membros ou esticava o corpo dos hóspedes a fim de ficarem no tamanho exato da cama que oferecia.
 Sem essa distinção, surge a aberração oportunista do “centro” ou da “terceira via”, onde geralmente se escondem os trambiqueiros intelectuais que entendem a importância da economia de mercado (característica associada à direita política) ao mesmo tempo em que rejeitam a tradição cultural judaico-cristã, como todo bom revolucionário. Por abraçarem idéias tanto da direita quanto da esquerda, se dizem “centristas” e se colocam acima do debate, pairando por cima dos “extremos”, sem perceber que essa tática de afetar isenção é só mais nova variante daquela velha prepotência elitista, típica do iluminismo francês, de quem se acha tão acima da canaille que nem precisa adotar posição. Uma roupagem très chic pra disfarçar os sectários do progresso, que trocaram a ética judaico-cristã pela crença tola no sentido da história e pelo cientificismo mais barato.
É por se ignorar o cisma essencial entre conservadorismo e progressismo que fenômenos típicos da era pós - Guerra Fria como a burocracia estatal da UE, a ala moderada do Partido Democrata americano, a Social-Democracia e o Socialismo Europeu, enfim, liberais materialistas de toda ordem, podem, confortavelmente, se encaixar no “centro” e posar como desinteressados portadores da razão, enquanto impulsionam uma agenda política e social cujo fim último é, como admitiu abertamente Barack Obama, transformar fundamentalmente a Civilização Ocidental de cima pra baixo.
A mesma Modernidade que trouxe o capitalismo, as liberdades individuais, a produção em profusão, a redução da miséria a índices relativamente irrelevantes e a democracia, ao libertar o ser humano dos escrúpulos morais que a ética judaico-cristã impõe, abriu a caixa de Pandora das ideologias totalitárias. Muito antes das divergências que as colocam em lados opostos, elas compartilham a rejeição ao ideário filosófico medieval e à tradição cultural ocidental, logo, à essência do pensamento conservador em si. À “morte” de Deus e ao controle sobre a natureza se seguem, naturalmente, as câmaras de gás, os campos de reeducação pelo trabalho, os gulag e o aborto de bebês com síndrome de Down, afinal sem o olhar reprovador de uma Entidade vigilante, quanto mais o homem controla a natureza, menos se controla. Se o mundo material tivesse salvação, só o Conservadorismo salvaria o mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário