"Vaidade
das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade."
Eclesiastes
1:2
Em
seu clássico As Idéias Têm Consequências
Richard M. Weaver sugere que a origem sentimental, por assim dizer, do
movimento romântico nas artes é o estranhamento e o mal estar de uma classe
média recém-letrada e recém-urbanizada, proveniente de um ambiente rural
aristocrático, diante da mecanização do mundo provocada pela revolução
industrial. É o deslumbramento desses descendentes de agricultores
recém-alfabetizados, órfãos de uma vida mais próxima da natureza e, por isso,
tendentes a romantizar um bucolismo rural pauperizado como ideal de vida em
sociedade, a pedra fundamental da crítica social ao capitalismo, mote da então
nascente esquerda organizada.
Ninguém
foi mais bem sucedido em instrumentalizar politicamente essa insatisfação do
que Jean-Jacques Rousseau. Ainda antes de Karl Marx, que aproveitou o ensejo
para dar uma roupagem “científica” a essa disposição de espírito algumas
décadas mais tarde, o filósofo suíço lançou as bases emocionais do movimento
político responsável pelo mais intenso cisma ocidental desde a Reforma.
Muito
mais que o proletário (um totem aglutinador da variante marxista da seita do
progresso), o condutor real desse movimento é o intelectual urbano de classe
média. Apesar da importância que a retórica marxista destina ao primeiro, é ao outro
que cabe a tarefa de orientá-lo e mobilizá-lo politicamente. Sem a ação do
motor de arranque militante, o operário não pode movimentar as engrenagens da
revolução.
Daí
o equívoco analítico do marxismo clássico ao apostar tudo na ação do
trabalhador braçal de fábrica. O surgimento da chamada “consciência de classe”
depende da influência do agitador tagarela. Foi Antonio Gramsci quem chamou a atenção
para a necessidade da mudança de arena da luta de classes do campo econômico
para o cultural, o território dos intelectuais.
Eis
o nascedouro de sua influência e importância nos últimos cem anos. Muito mais
do que qualquer outro, o século XX foi o século dos intelectuais. Mesmo que a
segunda metade do século XVIII, o vaidoso “século das Luzes”, traga em si o embrião
do poder de influência do formador de opinião na tomada pública de decisões, seriam
necessários mais cem anos a partir dali para que os efeitos disso pudessem ser realmente
sentidos.
E são eles mesmos, tão cheios de idéias,
opiniões e pretensões, exatamente os descendentes daqueles caipiras
recém-letrados, deslumbrados com a vida na cidade e impactados com o cheiro de óleo
diesel dos centros industriais.
Daí
que o meio urbano passa ser o centro de gravidade da atuação política do
intelectual. Com a mudança do eixo econômico do campo para a cidade ocasionada
pela revolução industrial, aqueles filhos de camponeses, que gerações atrás
teriam que se contentar com a vida no campo, agora, recém-letrados, vão compor
a classe média urbana que vai ensejar as transformações sociais.
A própria natureza do meio urbano reflete o
caráter de suas inclinações políticas: se seus antepassados dependiam
diretamente dos frutos de seu trabalho para garantir a própria existência
material, agora sua ocupação separa sua atividade da sua subsistência direta. Não é à toa que o campesinato, mesmo sendo classe produtiva tanto quanto o proletariado urbano, não é considerado revolucionário à luz do marxismo clássico. Em
outras palavras, a cidade, ao protegê-lo do contato direto com a natureza, cria
no suburbano de classe média a sensação de proteção daquele que não percebe na
luz elétrica, no asfalto e na água encanada apenas partes daquele colchão
efêmero e artificial que o protege dos paus e pedras da natureza logo abaixo.
A
consequência lógica desse senso de segurança é a falta de sensatez e o ânimo
desenfreado em experimentar a todo custo, não importando os resultados. Ora, se
tudo é tomado como garantido, nada mais natural que ousar, ignorar convenções,
experimentar, em resumo, “mudar o mundo”, adquira ares de coragem romântica.
Por isso que o intelectual urbano, via de regra, não tem responsabilidade nem
senso de accountability.
Quando
Thomas Sowell escreveu que a primeira regra da economia é a escassez e a
primeira regra da política é ignorar aquela, certamente foi esse tipo comum de
classe média que ele tinha em mente. Se antes uma atuação insensata implicaria
numa colheita ruim e, consequentemente, em fome, agora, uma teoria social
equivocada, gestada num departamento de humanas de universidade pública
financiada com o fruto do trabalho alheio, não traz qualquer ônus direto a seu
criador (tal qual um Sartre maoísta confortavelmente protegido no ocidente
opressor da revolução cultural, da fome e da perseguição aos intelectuais na
China comunista...). Da mesma forma, para cada liberalóide irresponsável
atacando instituições apoiado num ideal utópico de liberdade, um total de zero
se responsabilizaria por ter criado condições de desordem que levassem
exatamente ao contrário do fim pretendido.
Aí
tem origem o fenômeno descrito por Ortega Y Gasset do señorito satisfecho, o típico burguês de classe média com mais
pretensões que condições que, com sua mentalidade forjada no individualismo e
no narcisismo típicos da concepção antropocêntrica de mundo que tomou forma na modernidade,
se apóia na sua superioridade numérica e, em tempos de democracia e opinião
pública, se torna o centro dos eventos.
Quando
Bill Maher disse que os EUA são “uma Alemanha cercada por 200 milhões de
idiotas”, foi exatamente esse sentimento que ele externalizou. O sentimento do
señorito satisfecho narcisista e cheio de si, que se acha um oásis de
sabedoria e sofisticação em meio a uma multidão de caipiras atrasados com
forcados e tochas nas mãos, vivendo com medo dos deuses e com a Bíblia na mão
para assegurar a próxima colheita.
Esse
senso de superioridade e confiança na própria capacidade, imerso num frenesi de
reforma do mundo segundo as próprias vontades, geralmente ancorado na expertise
em alguma técnica, é a marca registrada do intelectual urbano de classe média,
a porta de entrada para a visão de mundo progressista e o zeitgeist da própria modernidade. É o que caracteriza a variante
mais comum e palatável da fé no progresso, um movimento que começou com eugenistas,
positivistas, racistas científicos, e comunistas e terminou com liberais e liberals, na acepção americana do termo:
gente que de uma forma ou de outra, lançando mão de uma tática ou de outra,
acham que o mundo é moldável segundo suas vontades e interesses e encaram o
capital de instituições e tradições, acumulado durante séculos de experiência
humana, como, no mínimo, algo preterível. Quando Marco Aurélio Mello censura a
“falta de urbanidade” na reunião ministerial vazada para a imprensa por decisão
arbitrária do próprio STF ou Luis Roberto Barroso rotula de “guetos
pré-iluministas” os grupos que compõem a base de apoio ao governo Bolsonaro, é
da rejeição dessas pessoas àqueles valores que eles se ressentem.
O
reflexo da componente filosófica do éthos
de classe média é o aspecto comportamental, o mais visível. A universalização
da alfabetização e o acesso ao ensino superior deu ao plebeu ávido por destaque
social (por isso, geralmente ressentido) meios de se auto-afirmar na sua
insignificância, ao possibilitá-lo alcançar posições que lhe seriam mais
restritas num contexto aristocrático. Na época, o fato de as possibilidades de ascensão
social estarem, via de regra, atreladas a títulos de nobreza, por sua vez condicionados
à posição ocupada pelo indivíduo na rígida hierarquia social de então, impunha
que a distinção social para fora do círculo da aristocracia estivesse
fortemente vinculada ao mérito pessoal, fazendo com que apenas os realmente
notáveis, aqueles que dessem alguma contribuição inquestionável à sociedade da
época, tivessem acesso às honras públicas.
O
resultado disso é uma cultura saudável de decoro estóico que inspirava nas
pessoas comuns a conveniência psicológica de cultivar aquele senso tory de discrição, classe e recato, que
na visão geral narcisista e ressentida que hoje é norma, é facilmente
confundida com derrotismo, acomodação e “complexo de vira-latas”.
Quando
isso se perde, o que sobra é um ambiente tóxico de autopromoção grosseira, em
que aquele senso de temperança e modéstia que antes era a norma, dá lugar a um
ritual coletivo de autoexaltação em rebanho de narcisistas deslumbrados com as
possibilidades de distinção social instantânea desses tempos. A facilidade de
obter marcas de reconhecimento, por fajutas que sejam, operou uma mudança
drástica no senso de decoro das pessoas: as converteu em alpinistas sociais
paranoicos por atenção. Assim foi forjado o espírito de classe média: um bando
de jecas deslumbrados, desprovidos daquele senso de decoro aristocrático,
enlouquecidos com as infindáveis promessas de holofotes da modernidade.
Aí
tem início a tragédia dessa era: o mundo não precisa de tantos intelectuais. O
simples constatar dessa realidade é suficiente para imprimir no señorito satisfecho aquele senso de
indignação moral típico do caluniado e do difamado. Gente por demais ansiosa em
aparecer e se fazer notada, deslumbrada com um mundo que glorifica a ostentação
e criminaliza o decoro e a temperança é naturalmente refratária àquelas
virtudes aristocráticas sobre as quais se assentou a sociedade de onde nasceu o
mundo moderno. O impulso parricida de rejeição aos valores de onde surgiu a
modernidade e contra os quais ela se insurge é a marca registrada desse tipo de
gente. O mesmo tipo que se jacta de ler dois manuais de progressismo
mecanicista pop para idiotas dos Harari da vida, e sai aos quatro ventos
bradando como o iluminismo libertou o mundo das trevas medievais, tão vaidoso
quanto falante e ignorante, com aquela típica ânsia narcisista de aparecer de
qualquer forma.
Do emergente que passou de repórter de rua a correspondente
no exterior, que força o sotaque pra sinalizar ao espectador o domínio em um
idioma estrangeiro; ao investidor freelancer
que posta foto de paletó e gravata em rede social e usa jargão economicista
no dia a dia, fora do ambiente de trabalho, para exibir um conhecimento técnico
adquirido; passando pelo funcionário público que galgou posição na burocracia
estatal e exibe o cargo em descrição de rede social, acompanhada de selfie sorridente na repartição: todos
eles são os descendentes afetivos daquela primeira leva de caipiras da Europa
medieval que teve acesso à alfabetização. O mesmo tipo de jeca deslumbrado
ansioso por aparecer e conseguir um lugar ao sol das distinções públicas.
O
rebote, então, desse ritual de onanismo ególatra coletivo não poderia ser
outro: diante das enormes promessas de exposição narcísica que a modernidade
promete, tal qual o cão que tem que se contentar em assistir aos frangos
grelhando na máquina de churrasco, a maioria não consegue um lugar na vitrine
das opiniões e precisa recorrer aos ansiolíticos e à autoajuda. Daí os
espetáculos de vergonha alheia nas palestras empresariais de autoajuda, com
seus coaches motivacionais, ou as
tristes exibições de autopromoção em rede social, em meios a sorrisos forçados
e artificiais: um bando de gente carente e emocionalmente fragilizada buscando
loucamente por qualquer fragmento de atenção que puderem receber. Um pedido de
ajuda desesperado. Mesmo que isso custe o restante de dignidade que ainda
possuem.
Longe
vão aqueles tempos atrasados onde a cultura saudável de temperança e decoro, a
promessa de redenção no além-morte e o senso comum de exaltação do divino em
detrimento do ego fizeram as vezes de autoajuda e ansiolítico para as pessoas
comuns. Quando Deus morreu para dar lugar ao “progresso” e à era das “luzes”,
aquela dose diária de soma passou a se fazer necessária para manter as coisas
funcionando. Em nome do alvorecer dessa nova era de felicidade, iluminação e
razão, nada mau trocar o ansiolítico espiritual pelo químico. O que poderia dar
errado?
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