A barbárie e a escassez são a norma na experiência humana. Em mais de quatro mil anos de civilização, apenas em 1215 conseguiu-se obter de um soberano o compromisso de obedecer a um compilado de normas destinadas a impedir o exercício do poder absoluto. Essa
demora desde a invenção da agricultura, a consequente sedentarização da espécie
e o advento das primeiras sociedades, só prova que a noção da vida humana como
um valor objetivo nada mais é do que um luxo
extravagante na cruenta história da humanidade.
Produções
como Game of Thrones (GOT) mostram isso claramente. Mesmo ambientada em tempo e lugar fictícios, a trama retrata
basicamente as relações de poder numa sociedade feudal na qual o valor de uma
vida depende da família a que pertence. Nada muito distante, portanto, do que
vem ocorrendo na maior parte do tempo em que o homo sapiens tem reinado sobre a Terra.
Como
em qualquer sociedade em qualquer época, a maioria dos protagonistas da
história está sempre em busca de poder. Logo de cara fica evidente que,
justamente por isso, encarnam as maiores ameaças à integridade física das
pessoas comuns. Não por acaso, as personagens com mais escrúpulos do que
pretensões são as que menos veem com naturalidade o caráter descartável que a
vida humana assume em contextos onde impera a lei do mais forte. Não é Tyrion,
o Lannister renegado, que acha que “há mortes demais nesse mundo”? Como Arya
Stark aprendeu com Syrio Forel, seu mestre de dança braavosiano, só existe um
deus em GOT e ele se chama morte.
Em verdade, quando se trata de política, esse é o único deus que as pessoas
temem. O brilhantismo da narrativa se escora exatamente em expor sem eufemismos
a real essência do jogo político: em busca de poder, qualquer um é capaz de qualquer coisa.
O
exemplo mais dramático disso talvez seja Stannis, irmão do meio do rei Robert
Baratheon, que não hesita em matar o irmão mais novo e a própria filha em seu
desespero para conseguir o Trono de Ferro. Após a morte do rei, o título de
Lorde dos Sete Reinos caberia por lei a Joffrey Lannister/Baratheon, em teoria
seu filho mais velho. Como Jon Arryn e Ned Stark descobrem que Robert não era
pai de nenhum dos filhos da rainha, seu irmão imediatamente anterior se torna,
de fato, seu verdadeiro sucessor. Investido da legitimidade que as leis de
Westeros o concedem, ele faz literalmente tudo a seu alcance para exercer
seu direito à coroa. Mais do que para qualquer um dos tantos reis
autoproclamados, para ele os fins realmente justificam os meios. É assim que
Stannis se converte a uma seita obscura e passa a ser manipulado por uma
sacerdotisa que o ajuda a matar o irmão mais novo (seu rival na corrida pelo
trono) e chega a convencê-lo a queimar a própria filha como oferenda ao sadismo
do deus que segue. Por poder, Stannis vende a alma ao diabo e extingue a
própria linhagem.
Convém constatar que, mesmo que haja uma fé por trás das atrocidades do
Lorde de Pedra do Dragão, não é em seu nome que ele as pratica.
Sua “conversão” não passa de mais um artifício empregado no afã de conseguir o
Trono de Ferro, o que faz sua falta de escrúpulos guardar uma semelhança vívida
com o niilismo revolucionário do século XX. Se é a busca pelo poder a razão pela qual ele queima viva até a própria filha, o que o distingue de facínoras
como Achile Lollo, assassino incendiário e fugitivo da justiça italiana ligado ao PT e ao PSOL? Ou de Cesare Battisti, outro delinquente homicida
italiano queridinho da extrema-esquerda brasileira? Stannis não é um
crente e nunca seria e é apenas isso que ele não tem em comum com os
carniceiros estatólatras do Baader Meinhof, Brigadas Vermelhas, PAC et
caterva.
A
destruição “por direito” de
Stannis Baratheon em busca do poder absoluto só encontra paralelo ideológico na
devastação bem intencionada levada a cabo por Daenerys Targaryen
com o mesmo propósito, obviamente. Última representante da lendária dinastia
que governou os Sete Reinos por três séculos, Dany passa por maus bocados na
trama. Tratada como moeda de troca pelo irmão também aspirante ao Trono de
Ferro, é oferecida como “esposa” ao líder de uma horda bárbara em troca de seu
exército. Como as “mil lâminas” que compõem o assento do soberano de Westeros,
ela é forjada no fogo dos abusos e violências de que foi vítima. Diferentemente
do que ocorreria se seu pai não fosse apeado do poder, a selvageria que sofre
não só a torna forte e temível diante de seus inimigos (lição que Sansa Stark
demora tanto a aprender) como a sensibiliza diante do sofrimento das pessoas
comuns.
É
exatamente aí que se revela o ponto fulcral das motivações da princesa
Targaryen em sua luta pela coroa. Apesar de toda depravação de Stannis,
ninguém, nem mesmo Cersei Lannister, a encarnação do mal na história, é mais
capaz de impor e manter um regime tirânico do que a Quebradora de Correntes. As causas nobres que propagandeia lhe
conferem uma aura de legitimidade que, além de fazê-la pender naturalmente à demagogia populista (característica indispensável a qualquer aspirante a déspota), torna
toda barbaridade levada a cabo em seu nome moralmente
justificada, inclusive e principalmente para ela mesma. Se ela luta contra a escravidão,
por que não crucificar os antigos mestres no caminho? Eles mesmos não
crucificavam seus escravos? O problema é que a fama de “Incorruptível” fica a
um tropeço do Comitê de Salvação Pública e suas guilhotinas. Há diferença entre
o “Kill the masters!” da Mhysa (“mãe” no baixo valiriano da Baía dos
Escravos) e o "La terreur est juste justice" de Robespierre? É precisamente por
isso que, ao julgar Petyr Baelish como o “homem mais perigoso dos Sete Reinos”,
Varys comete seu mais grosseiro erro de cálculo político (pelo qual pagaria com a própria vida mais adiante): Mesmo que o Mindinho esteja disposto a reduzir tudo a
cinzas para reinar, naturalmente ninguém confia nele. No caso de Daenerys, como
se opor à mãe dos pobres, que libertou os escravos e tem as melhores intenções do mundo, mesmo que seu objetivo
declarado seja literalmente idêntico ao do alcoviteiro que todo
mundo despreza?
Nada
explica melhor o grandioso ato de vandalismo ideológico que foi a derrubada da
Harpia de Bronze do topo da Grande Pirâmide, logo após o cerco de Meereen.
Certamente os motivos da Mãe dos Dragões, os mais nobres possíveis, devem ter incluído o
fato de o monumento ser um símbolo do escravagismo que ela luta para abolir
(como se a própria pirâmide da qual ela reina também não fosse. Mas essa,
curiosamente, fica intacta). No afã aloprado de “fazer justiça” às vidas
futilmente ceifadas para levar a cabo o empreendimento, ela termina por
insultar a memória dos escravos mortos, indelevelmente marcada em cada
centímetro cúbico da estátua, ao pô-la abaixo e decretar que seu sofrimento
será esquecido e suas vidas terão sido em vão. Hoje em dia Daenerys seria
facilmente um dos agitadores oportunistas por trás dos tantos idiotas a gritar
pela extinção da bandeira confederada e clamar por safe zones em universidades nos EUA ou a
invadir e depredar escolas e exigir “passe livre” no Brasil. Sua loucura
iconoclasta (quem herda não furta, afinal) não é nada mais do que um remake das destruições jacobinas e soviéticas
de igrejas ou da fúria alucinada do ISIS e do Talibã, mandando pelos ares
as ruínas de Palmira e os Budas de Bamiyan. No fundo a intenção é chocar,
demonstrar força e enaltecer uma ideologia. Qualquer que seja.
Se
o grau das pretensões políticas de um personagem é diretamente proporcional a
sua predisposição à destruição e inversamente proporcional a seu nível de tolerância a atrocidades,
ninguém encarna melhor esse axioma do que Varys. Escravo órfão vendido a um
feiticeiro que o castra e abandona pra morrer, A Aranha aprende cedo que, exceto para uma
minoria de afortunados, o sofrimento é a regra da vida. Forçado a aceitar todo
tipo de degradação para sobreviver, provação atrás de provação o eunuco se
torna um ladrão habilidoso e enriquece. Contra todas as possibilidades, galga
os degraus que um dia o levariam ao Pequeno Conselho (o staff de conselheiros
do rei) como Mestre dos Sussurros, uma espécie de chefe de inteligência do
reino.
Por
testemunhar in loco e em tempo real as consequências das
revoluções e das utopias políticas para as pessoas comuns, Varys é instintivamente
refratário a salvadores e conquistadores. “Sempre odiei os sinos. Eles soam
pelo horror. Um rei morto, a cidade sob cerco”, pondera pouco antes da Batalha
da Água Negra. Seu
ceticismo em relação à lealdade feudal tão valorizada em Westeros explica o
menosprezo com que é tratado pelos lordes arrogantes sedentos por poder. Quando
confrontado pelo tolo Ned Stark sobre a quem serve ele responde: “ao reino, meu
senhor. Alguém tem que fazer isso”. Mesmo ciente de todas as imperfeições e
contradições da sociedade que luta para conservar,
Varys entende que nenhum “progresso” que os transformadores prometam compensa
todo o sofrimento que vem a tiracolo. Como Daenerys mesmo diz, Lannister,
Stark, Targaryen, Baratheon, Tyrell, Martel e Arryn são apenas nomes numa roda
que destrói tudo por onde passa em seu furor descontrolado farejando poder.
Como não se pode quebrá-la, como anseia a Rainha Prateada em seus delírios de “outro mundo
possível”, o Mestre dos Sussuros se esforça para
fazer o que é realmente factível: contê-la.
Só
assim é possível entender sua recusa em ajudar Ned Stark a escapar da prisão e
se juntar ao filho, impulsionando uma rebelião com potencial para destruir o
reino. Não é por odiar Petyr Baelish que ele, juntamente com Olenna Tyrell,
frustra seus planos de casar com Sansa Stark e assumir o Norte. É por enxergar
na obsessão por poder e na falta de escrúpulos do então Mestre da Moeda razões mais do que suficientes para
impedi-lo de ter meios de pôr o reino abaixo no intuito de se tornar o senhor
dos escombros. Se ele se nega a tomar partido de Tyrion num julgamento
manipulado por Cersei, ele o faz pela mesma razão que o leva a ajudá-lo a
escapar pouco antes de sua execução: por reconhecer nele tanto o intelecto
brilhante por trás da defesa de Porto Real contra a devastação a
bordo da esquadra de Stannis, como uma força prudente a ser empregada no
esforço de manutenção de tudo de valor que está continuamente sob ameaça numa
sociedade onde a “honra” tem mais valor que a vida. Como todo conservador, A Aranha entende a importância da prudência e
sabe que toda mudança brusca e impensada, por mais “bem intencionada”
que seja, representa mais um risco à existência de tudo de valioso que foi
arduamente conquistado pela civilização do que uma oportunidade de criar um
paraíso na Terra num passe de mágica.
A análise das histórias de Stannis, Daenerys e Varys dá a medida das razões pelas quais os pontos de vista dos dois primeiros em relação à política e ao poder são tão diametralmente opostos ao daquele último.
Um
lorde orgulhoso, que sempre viveu à sombra do irmão mais velho, (que, como se
não bastasse ser o primogênito num status
quo extremamente patriarcal,
ainda derrota uma dinastia de três séculos e se torna rei) numa sociedade que
exalta conquistadores em detrimento de diplomatas, só poderia mesmo se tornar
um psicopata obcecado por títulos e poder.
Uma
princesa de nome antigo que leva uma vida de nababo até ser obrigada a fugir e
viver de favor. Vendida como um animal de reprodução pelo próprio irmão,
submetida às violências mais brutais e obrigada a descer de sua torre de marfim
e encarar a realidade dura, fria e seca da maioria esmagadora das pessoas
comuns, que faz festa sempre que consegue comer três vezes ao dia. Diante de
tudo isso, nada mais natural que alguém jovem,
verdadeiramente benevolente e, acima
de tudo, impulsivo, comece a
achar que vai salvar a humanidade na base da força, munido apenas das melhores
intenções do mundo, pondo em risco tudo de valioso que já existe e,
principalmente, ignorando que avanços civilizacionais não são mais que meros
desvios da norma sangrenta que dita as relações de poder entre os homens
através da história.
Já
um eunuco sem linhagem nem o dom da violência, que chega a uma posição de
destaque unicamente por sua sagacidade e disposição para o trabalho, tem todos
os motivos do mundo para lutar pela manutenção de uma ordem que, bem ou mal, o
permite sair da miséria e escrever uma nova história. Num contexto onde impera a lei da selva e que só
reconhece indivíduos sem sobrenome se tiverem utilidade prática, a tendência à
selvageria é, naturalmente, o ativo mais imediato. Por isso, brutamontes como
os irmãos Clegane, Bronn ou Daario Naharis terão a mesma importância em Pyke,
Vaes Dothraki ou em qualquer lugar onde haja alguém disposto a pagar por
sangue. Gente como Varys, por outro lado, só pode prosperar onde há
Império da Lei. Se a tendência da humanidade à selvageria é algo tão inexorável
quanto o instinto de auto-preservação, nada mais natural que a inclinação a
preservar o que a tanto custo foi conquistado (e que se evapora facilmente
diante da primeira convulsão social) seja o combustível a mover o Mestre dos Sussurros.
Quando
recriminado pelo Lorde de Winterfell por se manter em silêncio diante do
assassinato de seus servos por Joffrey, Jaime e Cersei, Varys simplesmente responde:
“E o faria outra vez, meu senhor. (...) Quando olha para mim você vê um
herói?”. Mesmo que não o seja diante dos critérios pervertidos de Westeros ele,
exatamente como Tyrion clamou durante seu julgamento, é o salvador anônimo de
todas as vidas sem sobrenome nem importância que se perdem sem que ninguém se dê
conta da existência nas infindáveis disputas entre os lordes sanguinários dos
Sete Reinos. Herói é uma figura arquetípica que reúne em si os atributos
necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de
dimensão épica. Num contexto onde direitos humanos não passam de um delírio na cabeça de algum idealista desacreditado, há causa mais homérica a defender do que a
vida daqueles sem nome que não passam de massa de manobra nas mãos dos que
empunham o gládio? Como sabiamente asseverou Sandor Clegane, tolos honrados
como Ned Stark, gênios imorais como Tywin Lannister, jogadores sem
escrúpulos como Petyr Baelish ou demagogos sanguinários "bem
intencionados" como Daenerys Targaryen não passam, todos, de assassinos. Ou, ainda, no realismo seco de Daario Naharis ao aconselhar a imperatriz dos sentimentos, um soberano ou é carniceiro ou é carne. E essa é exatamente a natureza da guerra política, sintetizada brilhantemente por Cersei Lannister: quando se joga o jogo dos tronos ou se ganha ou se morre. Nessa dança macabra, os verdadeiros heróis não empunham espadas. Eles cuidam para que sejam usadas
apenas em último caso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário