sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Um NOVO PRONA



“(...) o orgulho dos plebeus ricos ou recém-nobilitados cresceu com a causa que os ensejava. Sentiam com ressentimento uma inferioridade cujos fundamentos não conheciam. Não havia mais nada que não estivessem dispostos a fazer para vingar-se dos ultrajes sofridos e elevar sua riqueza ao que eles consideravam ser seu natural status e justo valor.”
Edmund Burke, Reflexões Sobre a Revolução na França.

“Todos os estabelecimentos franceses coroam a infelicidade do povo (...). É preciso renová-los (...) mudar os homens, as coisas; alterar as palavras; (...) destruir tudo, pois é preciso refazer tudo”. A frase, creditada a Rabaut Saint-Etienne, presidente da Assembléia Nacional, expressa muito claramente o zeitgeist de ruptura total com o passado que foi a marca registrada da Revolução Francesa. Pra todos os efeitos o evento significou um ponto de não retorno na história ocidental. A partir dali o espectro político admissível, ou Janela de Overton pra usar o termo técnico, ficaria confinado inteiramente ao campo ideológico sustentado sobre dois pilares: a ideologia do Progresso e a Modernidade. Tanto a direita quanto a esquerda, independente da forma como sejam definidas, têm, de um jeito ou de outro seu DNA filosófico ancorado nesses dois conceitos. Mesmo os partidários da ordem pré-moderna (conservadores), tanto refratários à ideologia do progresso quanto céticos a respeito da Modernidade, tiveram que buscar guarida num dos dois pólos sob pena de se verem excluídos do debate público.
Sem clarear a origem das idéias políticas é impossível rotular. Sem rótulos não se pode definir nenhuma agenda. Sem conhecer sua agenda política, não é possível conhecer os modelos de sociedade que cada agente político está atrás de implementar. E todo mundo tem uma concepção de sociedade. Os mais honestos a deixam transparecer marcando posição. Os mais cínicos, logo mais perigosos, se pintam como isentos, “acima de ideologias”, “nem de direita, nem de esquerda”. Como essas distinções econômicas já não fazem o sentido que faziam antes da queda do muro de Berlim, se uma distinção nova não for traçada é fácil se pintar como “centro”, “liberais”, ou “terceira via”, quando se reconhece o império da economia de mercado ao mesmo que se trata com indiferença, pra dizer o mínimo, o legado cultural da civilização judaico-cristã. A verdade é que esses termos são politicamente amorfos, ideais pra quem deseja esconder suas intenções. Exatamente por isso que, sem traçar a cisão entre progressistas, os crentes na teoria do progresso e na modernidade, e conservadores, os refratários, não é possível entender muitos dos fenômenos políticos do pós-guerra fria. E esse ambiente de confusão é tudo de que precisa quem quer impulsionar determinada agenda sem dar muito na vista.
É o caso de uma série de agentes políticos e movimentos identificados com pautas progressistas muito vagas, projetados em laboratório com dinheiro de grandes fortunas e apoio explícito de grandes meios de comunicação, que surgiram no debate público brasileiro com o propósito explícito de ocupar a lacuna deixada pela derrocada do projeto político do PT-PSDB. O objetivo desses novos agentes é representar a reserva moral que o partido dos trabalhadores representava na década de 1990, aliada à imagem de moderação e responsabilidade fiscal dos tucanos. Empunhando bandeiras genéricas contra as quais ninguém poderia se levantar sem uma argumentação sólida como a defesa dos “direitos humanos” e da “educação”, a estratégia desses grupos é se impor pelo consenso (afinal, que espécie de monstro seria contra educação e direitos humanos?) e, a partir daí, ir impondo sua agenda de maneira sutil.
Ao forçar a narrativa de que são “moderados”, “de centro”, “longe dos extremos à direita e à esquerda”, a estratégia desses grupos é exatamente a que Antonio Gramsci preconizava quando falava da necessidade de o partido se impor com a força de um imperativo moral categórico. E a idéia é exatamente impor as pautas multiculturalistas, diversitárias e identitárias às quais é do interesse de grandes grupos financeiros, midiáticos e culturais implantar. A intenção desses grupos é basicamente promover uma remodelagem total das sociedades ocidentais de cima para baixo. Para tanto, é imprescindível remover os obstáculos culturais a esse intento, dentre elas, a influência da moral judaico-cristã, com seu foco excessivo na apreciação da realidade objetiva, e a idéia de estado nação, que atravanca a conversão de cidadãos locais, apegados a suas raízes, em cidadãos do mundo cosmopolitas, sem ligação de nenhum aspecto com suas culturas locais.
O Novo Homem pretendido por esses movimentos é exatamente o arquétipo do hipster “desconstruído” que povoa os grandes centros urbanos ocidentais: desligado de qualquer noção de pertencimento nacional e transcendência, narcisista, hedonista, materialista e relativista. Para replicar o padrão de comportamento millenial, a estratégia desses grupos é impulsionar a agenda política dos pólos de poder financeiro e cultural ocidentais, basicamente a ONU, Wall Street e Bruxelas. A questão é que essa agenda política e cultural é frontalmente hostil ao caldo cultural no qual as gerações mais velhas cresceram, influenciadas em maior ou menor grau pela ética judaico-cristã.
Exatamente por isso que o ativismo desses grupos não pode, de maneira alguma, ser ostensivo e precisa desesperadamente do verniz de “moderação” que os grandes meios de comunicação, empenhados até a medula nesse projeto de reestruturação civilizacional, tentam a todo custo instaurar.
Promoção do aborto; descriminalização das drogas; imposição da ideologia de gênero na educação infantil; cerceamento da liberdade de expressão sob o pretexto de combater o “discurso de ódio”; incitação ostensiva da criminalidade sob o pretexto de proteger os direitos humanos de criminosos, com vias a induzir um colapso social que levaria a um consequente aumento do poder de intervenção do estado; o ataque frontal ao Cristianismo em todas as frentes; a relativização e demolição do modelo de família nuclear tradicional sob o pretexto de promover o acolhimento social das chamadas “concepções alternativas de família; promoção e propagação do homossexualismo e transgenerismo por trás da alegação de acolher pessoas nessas situações....
Tudo isso é ostensivamente hostil às sensibilidades morais de sociedades erguidas sobre fundamentos éticos rígidos e exigentes como os judaico-cristãos. Por isso o afã desses grupos em se pintarem como “centristas”, “moderados”, “terceira via”, “nem direita nem esquerda”. A única forma de implantarem essa agenda é de maneira subliminar por meio da cultura.
A ascensão do liberalismo político no Brasil, representada pela criação do Partido NOVO, por ser uma ofensiva do que se convencionou chamar de direita política num país dominado durante 30 anos por progressistas social-democratas, trabalhistas e sindicalistas, poderia levar a crer que se tratasse de um movimento na contramão desse processo de neocolonialismo cultural, levado a cabo por elites globais anticristãs em terras cristãs. Ocorre que, como toda ideologia moderna, a única preocupação do liberalismo é com o aspecto material da existência humana. Seguindo o denominador comum a personalidades tão distintas quanto David Hume, John Locke, Adam Smith, Edward Gibbon e Karl Marx, o entendimento liberal é de que, nas palavras deste último, a infraestrutura (as relações de produção e troca) determina a superestrutura (a cultura), concepção diametralmente oposta à de Edmund Burke, acusado, (quem poderia imaginar!), de revolta contra as “Luzes”. Segundo o deputado whig irlandês, pai do conservadorismo moderno, as maneiras é que determinam o comércio, isto é, uma sociedade civilizada é o pré-requisito para as relações de troca e estas, por si só, não podem produzir um estado de direito. Eis aí o fosso intransponível que separa liberais e conservadores, razão pela qual os primeiros são apenas mais um braço do leviatã progressista que tomou conta do Ocidente após a Queda da Bastilha.
O próprio nome do partido já trai seu teor progressista. Quando se escolhe um nome como NOVO, se quer passar a noção de que o que determina o valor das pautas do partido é justamente o fato de serem novas, em consonância direta com a fé progressista, que sujeita a moralidade de idéias e instituições à progressão histórica, como se algo, quanto mais velho o fosse, pior também o seria, inevitavelmente. Exatamente como alguns desses movimentos “isentos e sem ideologia” incensados pela mídia de massa. O exemplo do movimento “Acredito”, de onde saiu a deputada Tábata Amaral, remete ao que Michael Oakeshott denominou de política da fé, aquela que confia na ação estatal para solucionar os problemas humanos, típica do pensamento progressista. Por sua vez, o nome do movimento “Agora!” (com exclamação e tudo), fundado por Ilona Szabó, funcionária de George Soros, remete claramente ao imediatismo sui generis da mentalidade revolucionária (reforçado ainda pelo uso da exclamação no nome que o movimento leva), outro fenômeno típico da modernidade e derivado da cosmovisão progressista.
O aspecto do pensamento moderno mais pronunciado nos liberais do NOVO, entretanto (também presente nos progressistas de esquerda, mas em menor grau), é o elitismo positivista. Comum a todo o espectro de pensamento moderno, a marca dessa ideologia é a idéia de que o homem comum, por não dispor do arcabouço teórico das elites intelectuais de classe média oriundas do meio acadêmico, deve ser tutelado para o seu próprio bem. Assim sendo, todas as superstições que foram deixadas pelos velhos que não acompanharam o progresso da história, como o sentimento religioso, a moral judaico-cristã, a precedência do transcendente ante o imanente, e que podem pôr em risco a religião secular liberal do utilitarismo econômico, devem ser postas de lado em detrimento da maximização do bem estar material da sociedade, afinal ele é tudo que importa. Quando se vê João Amoedo falar em taxar igrejas ou ser dúbio e relativista em relação a pais exporem crianças à nudez de adultos estranhos, é exatamente aí que se mostra a convicção de que os anseios do cidadão comum, com todos os seus preconceitos e superstições, são, na melhor das hipóteses, um estorvo à religião moderna do prazer, e, na pior (o horror!) entraves intoleráveis à otimização econômica da sociedade.
Dentro do espectro progressista, o NOVO tem mais pontos em comum com o PRONA do que seus membros vaidosos estão dispostos a admitir. Apesar da clara distinção no campo econômico, no qual o partido de Enéas Carneiro preconizava uma ação mais interventora do estado e o controle de algumas áreas da atividade econômica, consideradas estratégicas, no núcleo político há semelhanças que dizem muito sobre o que significa, de fato, ser liberal.
De matriz positivista, o PRONA defendia um governo de técnicos, exatamente a mesma intenção do NOVO quando sujeita a admissão de filiados exclusivamente à seleção por concurso. A essência do positivismo é a idéia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro. Assim sendo, as sociedades humanas são corpos físicos otimizáveis mediante a ação de uma elite de tecnocratas/cientistas, que, portadores das idéias e dos conhecimentos necessários a fazer a sociedade “andar pra frente”, poderiam (quem sabe até talvez devessem) prescindir do quantum de conhecimento e cultura criados e adquiridos espontaneamente pelas sociedades no desenrolar do processo histórico. É esse éthos arrogante, típico da modernidade, de se imaginar detentor de todo o conhecimento importante e de encarar o aspecto metafísico da experiência humana e o que resistiu ao teste do tempo como, na melhor das hipóteses, fardos impostos por tradicionalistas medrosos que impedem a sociedade de alcançar a alocação perfeita dos meios materiais, o denominador comum entre todos os partidários de ideologias modernas, dos socialistas adoradores do estado, aos liberais adoradores da matéria, passando pelos positivistas adoradores da ordem artificial, que enxergam a humanidade como gado a ser tocado.
Esse tipo de moralismo vaidoso de quem se acha condutor da humanidade rumo ao progresso é o alicerce das religiões políticas modernas. Enquanto progressistas de esquerda o têm em razão da pretensa superioridade moral de quem se imagina lutando pelo bem da humanidade, no caso dos liberais ele surge da soberba de quem se sabe advogado de um modelo econômico eficaz em produzir em profusão e se acha guardião da eficiência econômica da sociedade. E aí é possível estabelecer outra conexão do NOVO com o PRONA: era unicamente em razão da sua ineficiência econômica que Enéas rejeitava o socialismo, exatamente o critério supremo que os iluminados laranja usam para definir tudo. O moralismo do doutor, portanto, deriva da mesma base ideológica que o dos acólitos de Amoedo: são todos personalidades profissionais destacadas, técnicos bem sucedidos que creem que conhecimento acadêmico é, por si só, suficiente para garantir um bom governo.
Não que se possa prescindir da técnica no exercício do poder. Obviamente há posições que devem ser preenchidas por gente versada em áreas específicas, como a condução da justiça e da economia, por exemplo. O poder de decisão, no entanto, não deve ser prerrogativa exclusiva de técnicos pela simples razão de que erudição acadêmica não garante prudência, sabedoria e moderação, as principais virtudes que fazem um bom governante. A maioria esmagadora dos piores assassinos da Modernidade, de Hitler a Mao, de Robespierre a Charles Taylor, eram intelectuais (com a notável exceção de Stálin, que era um mero salteador). Apesar de eruditos (e também muito por causa disso), lhes faltava aquele senso de humildade intelectual, que tende a ser cada vez mais raro quanto maior a quantidade de títulos acadêmicos que se possui.
Não que Enéas fosse um genocida em potencial. Ele de fato tinha tendências fascistas (fascismo de verdade, não essa quimera inventada por caluniadores sem argumento), refletidas em suas pretensões estatizantes na economia e no discurso autoritário. Mas o que sintetiza sua vocação positivista não é o apelo coletivista de suas idéias ou sua sanha por controle, mas sua tendência de depositar todas as esperanças da humanidade na técnica, exatamente como a turma da Conexão Faria Lima faz. Dada sua capacidade comprovada de gestão financeira, Amoedo com certeza daria um bom ministro da economia, secretário de privatizações ou burocrata administrativo, mas essa seria a única certeza em relação a sua competência. Ele daria um bom presidente? Talvez, mas não são suas habilidades técnicas que dão certeza disso.
            Tal como qualquer fé moderna, o liberalismo padece do mesmo dilema de Procrusto: a pretensão arrogante em focar em como o mundo deveria ser impede o cultivo da saudável humidade intelectual de quem se inclina a ver o mundo como realmente é. Como diz o adágio conservador, it is what it is. O importante a se atentar aqui é a capacidade do ideal positivista de se imiscuir em toda ideologia moderna, unicamente por ser ela mesma, moderna. Uma concepção de mundo ancorada no respeito à tradição e na reverência ao passado tende a fugir disso, simplesmente por requerer, necessariamente, o tipo de simplicidade de espírito impossível a quem acredita no potencial redentor da razão humana. Entender que esse mundo não tem salvação requer o tipo de sabedoria mais acessível ao homem comum da rua do que a gente como João Amoedo e Enéas Carneiro.


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