terça-feira, 7 de julho de 2020

Uma Dúvida Sincera



Quando Zeca Camargo revelou ter bebido da taça de um Cazuza que acabara de revelar sofrer de AIDS, houve quem visse ali um lindo gesto de tolerância, um manifesto progressista contra o preconceito com portadores de HIV. Pouco importa se o cantor tivesse, na ocasião, alguma lesão na língua, na mucosa oral ou na gengiva que porventura fizesse seu sangue entrar em contato com a bebida. A decisão do entrevistador não foi afetação de virtude, mas um ato de coragem e desprendimento. Qualquer um sabe que a doença não se transmite por meio de uma taça de vinho e quem quer que tenha a audácia de temer pela própria saúde e recuse compartilhar um copo com um aidético não é alguém com receio de contrair o vírus, mas um nazista, preconceituoso e obscurantista que quer confinar doentes num gulag.
Eis que chega 2020 e um aperto de mãos se torna um ato de terrorismo biológico com o potencial de transmitir um vírus que se propaga pelo ar. A não ser que haja seres humanos cujo meio de obtenção de energia seja a respiração cutânea, ou que lamber as mãos e esfregá-las no rosto após um cumprimento tenha virado convenção social, por que tocar as mãos de algum potencial portador de coronavírus é mais temerário do que beber do copo de um aidético comprovado? Por que se recusar a apertar as mãos de alguém acometido de covid-19 não é preconceito contra infectados pela doença? Ninguém preocupado com o estigma social sobre os doentes numa pandemia?
Curiosamente, o tipo de compunção (pra dizer o mínimo) que a beautiful people do showbiz infligiria ao entrevistador caso tivesse recusado a taça, se converteria hoje em efusiva aprovação se o mesmo Zeca Camargo, alegando cumprir as normas de distanciamento social da OMS, recusasse o aperto de mão de um desconhecido qualquer. Óbvio que, se fosse um Cazuza a estender-lhe a mão, seria deselegante ele fazer o mesmo, já que o que menos importa é a convenção, mas, sim, a quem ela se aplica. Só isso para explicar como tocar as mãos de alguém num contexto de pandemia é mais perigoso que ter contato com sua saliva. Ainda mais em se tratando de uma doença como a AIDS, cujo requisito para pertencer ao grupo de risco é apresentar atividade metabólica, e cuja presença no organismo era, devido às taxas de mortalidade à época, praticamente uma sentença de morte (o que não ocorre com a covid-19 nem nos grupos de risco).
Mas, se até o abafar do espirro tem que ser feito com a articulação do cotovelo, qual o problema no aperto de mão? Será que o vírus desce pelo antebraço em direção ao pulso? A existência desse tipo de pergunta é um indicativo de como a ânsia de algumas autoridades em se mostrar proativas facilmente deságua num salvo-conduto auto-concedido para determinar o comportamento e as ações dos outros num nível que extrapola o próprio ordenamento legal. Ninguém em sã consciência desaprovaria esse senso de urgência numa situação de pandemia, o problema é o que se esconde por trás dele.
Quando se pensa no tipo de orientação sem sentido que as pessoas aceitam sem pensar em troca de uma sensação artificial de suposta segurança, fica difícil não imaginar como seria tão mais fácil para alguma autoridade mal intencionada se utilizar de uma situação de emergência para testar os limites das pessoas. Numa situação normal seria absurdo aconselhar alguém a evitar apertos de mão a fim de não contrair gripe. Simplesmente não faz sentido. Qualquer um sabe que cobrir o rosto com as duas mãos é mais efetivo (e mais estético) para conter a propagação pelo ar do conteúdo de um espirro do que usar a articulação do cotovelo.  
Não que as pessoas sejam estúpidas. É típico da natureza humana que o instinto de sobrevivência grite mais alto do que a razão fria. O que chama atenção é a forma como gente mal intencionada em posições de poder se utiliza disso para angariar mais poder sabendo que, quando se sentem ameaçadas, as pessoas tendem a tolerar todo tipo de arbitrariedade em troca de uma sensação de conforto.
Desde a esquizofrenia de uma OMS serviçal do Partido Comunista Chinês que, no momento inicial em que a propagação do vírus poderia ter sido contida, investe numa campanha de desinformação ao afirmar não haver necessidade nem do uso de máscaras nem do controle da entrada em outros países de cidadãos chineses (à época já infectados), para depois recomendar tudo ao contrário, à tirania de prefeitos e governadores que, sob os auspícios de um STF mais preocupado em fazer oposição ao governo federal, simplesmente revogaram a garantia constitucional do direito de ir e vir, chegando, inclusive, a prender gente só por estar na rua, é estarrecedora a lista de arbitrariedades cometidas em nome do bem comum.
No romance 1984, George Orwell descreve como o governo totalitário de Oceania precisa sustentar uma situação de guerra ininterrupta com seus vizinhos a fim de manter a população tolerante ao arbítrio do Partido que domina a política local. No romance 2020 o pretexto para tanto foi a pandemia do novo coronavírus. Se Cazuza ainda estivesse vivo para se infectar de covid-19 e oferecer uma taça de vinho numa entrevista em que anuncia ser portador do vírus, ao menos ainda seria possível cumprimentar alguém do jeito de sempre.

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