Em 17 de junho, o massacre de nove pessoas numa igreja metodista em Charleston, Carolina do Sul, reacendeu a antiga discussão sobre o acesso universal ao porte de armas de fogo e a irrestrita liberdade de discurso nos EUA, assegurados pela Constituição. Motivada por ódio racista, a chacina foi mais emblemática por ocorrer no interior da Emanuel African Methodist Episcopal Church, símbolo da resistência à intolerância étnica, que foi destruída algumas vezes por gangues supremacistas.
Desde
o 11/09, grupos terroristas domésticos seculares assassinaram nos EUA duas vezes mais pesssoas que jihadistas declarados. A liberdade de
expressão desfrutada por esses criminosos para difundir suas mensagens de ódio,
bem como o fácil acesso a armas de fogo, garantidos pelas duas primeiras emendas
da Constituição Americana, se configuram num perigo em vários níveis à
esmagadora maioria da população pacífica e tolerante.
O
primeiro e mais óbvio é a ameaça física representada pela existência dessas gangues
a pessoas que não se encaixam no padrão
branco/cristão/anglo-saxônico/heterossexual. De acordo com relatório
publicado pelo FBI em 2012, dos crimes registrados pelas mais diversas
motivações, os levados a cabo por ódio étnico contra negros (66,2%) lideram por
apertada margem sobre os crimes de motivação religiosa contra judeus (62,4%). O
terceiro grupo mais agredido, com 59,4% dos crimes de motivação étnica, são os
hispânicos, seguidos pelos homens homossexuais, vitimizados por 53,9% das condutas
ilícitas motivados por sua orientação sexual.
A
importância principal de levantamentos como esse reside na sua utilidade em
realçar o abismo que separa os preconceitos dos crimes por eles motivados. Duas
pesquisas que usaram diferentes métodos de avaliação para medir o índice de
racismo na população dos EUA (uma usou como base termos racistas pesquisados no Google e a outra, declarações racistas no Twitter) foram unânimes em apontar a porção
oriental do país como a mais preconceituosa. Como era de se esperar, estados
sulistas como Texas, Lousiana, Arkansas e Alabama, cuja maioria da população é
historicamente racista, apresentaram em 2006 alguns dos maiores índices de criminalidade motivada por ódio contra pessoas negras.
Uma análise apressada desses números poderia estabelecer uma dependência
necessária entre o discurso de ódio propagado por parte dessas populações e o
número de crimes motivados por ele nessas áreas.
Se
isso realmente é verdade, como explicar o fato de a Califórnia, situada no
extremo oeste do país, longe das áreas mais racistas de acordo com os
levantamentos apontados, apresentar o maior número de grupos extremistas em atividade dentre os estados da federação,
a maioria deles (aproximadamente 65%) declaradamente (racist skinheads,
neonazis, white nacionalists) ou
potencialmente (general hate) racistas? Como conceber que o mais famoso estado
dos EUA, mesmo praticamente livre de incidências de discurso racista em postagens no Twitter,
possua
uma taxa de ocorrência de crime motivado por ódio contra pessoas negras semelhante à do Texas, contumaz primeiro colocado nas listas de estados mais racistas dos EUA?
Mesmo que as agências policiais locais não sejam obrigadas a reportar crimes de
ódio nos EUA (o que explica o fato de raramente haver dados desse tipo de crime no Mississípi, por exemplo),
se houvesse correlação compulsória entre incidência de racismo e crimes por ele
motivados, dificilmente a Califórnia teria uma taxa de crimes de intolerância maior que a maioria dos estados racistas do leste, de acordo com
levantamento do FBI em 2006.
E
o que dizer sobre Montana e Idaho que, tanto
no levantamento realizado a partir das pesquisas no Google,
quanto
na investigação das postagens no Twitter praticamente não
registraram ocorrência de racismo mas possuem mais grupos de ódio ativos que a maioria dos estados americanos, incluindo a
maior parte da região oriental?
As
Dakotas, por sua vez, apresentaram resultados semelhantes tanto numa pesquisa quanto na outra mas, mesmo assim, possuem
alguns dos mais altos índices de crimes cometidos por motivação racista.
Por
fim, e mais importante, o estado de New York, apesar de ser a terceira unidade da federação com mais grupos de ódio ativos (aproximadamente 48% deles declarada
ou potencialmente racista),
além de possuir uma população fortemente racista de acordo com o levantamento baseado em pesquisas do Google,
possui uma das mais baixas taxas de crimes motivados por ódio em todo território americano,
muito menores do que estados praticamente sem incidência de racismo (ainda de
acordo com a pesquisa do Google) como as Dakotas, Montana, Washington e Idaho.
Esses
dados são bastante enfáticos em negar uma conexão obrigatória entre a
existência de preconceito étnico contra negros em determinada região e a ocorrência
de crimes contra eles cometidos por causa da cor de sua pele. Como atesta o mapa dos crimes de ódio dos EUA, elaborado pela University of
Michigan, a geografia desses delitos não coincide com a geografia do racismo. Não dá para
ignorar que o preconceito pode sim influenciar a conduta violenta contra
pessoas negras mas não é condição necessária para tal.
Dois
casos recentes são particularmente emblemáticos em demonstrar isso.
Há
pouco mais de um ano, o então dono do Los Angeles Clippers, Donald Sterling,
foi banido para sempre da NBA por conta de comentários racistas (proferidos em
particular, diga-se de passagem). No mês de Junho, Dylan Roof matou nove
pessoas numa igreja da Carolina do Sul, somente por serem negras. Por mais que
isso passe sempre despercebido, a causa que motivou tanto os comentários
equinos do pateta judeu quanto o massacre promovido pelo lixo branco de Charleston
foi uma só: a crença tacanha de que o fato de serem brancos os tornam melhores
que os outros. O cerne da questão é a diferença abissal entre o comportamento
de um de outro. Mesmo sendo racista, Sterling não abateu seres humanos como
gado. Roof o fez por ser um assassino, não por ser racista. Não foram os
discursos infames que ele postou em suas redes sociais, nem a arma que ele
utilizou no crime, nem a bandeira confederada que ele exibia do alto de sua
estupidez supremacista, os responsáveis pela carnificina na Carolina do Sul. Sua
frieza e crueldade, reflexos de sua miserável natureza sanguinária, utilizaram
seu racismo como válvula de escape para dar vazão a sua cólera assassina.
O
que leva, então, ao segundo perigo que paira sobre o povo livre dos EUA. Mais
grave porque velada, a ameaça contínua aos direitos fundamentais previstos na Bill of Rights se configura em item
recorrente na agenda de setores progressistas, fortemente empenhados em
aumentar o poder de ingerência do estado sobre o indivíduo. De maneira ardilosa
e rasteira, esses segmentos teimam em colocar uma gigantesca maioria de pessoas
pacíficas e tolerantes, ainda que eventualmente preconceituosas, no mesmo
patamar de vermes como Dylan Roof, a fim de cercear as liberdades garantidas
pela Constituição.
Se
utilizando de uma sórdida campanha de disseminação de medo e ódio, esse grupos
têm como modus operandi induzir as
pessoas a abrir mão de seus direitos em troca de uma suposta segurança que eles
têm a oferecer. Através da forma imunda como manipulam tragédias como a de
Charleston, eles usam as mortes de inocentes a fim de convencer pessoas
pacíficas que meia dúzia de degenerados representam o grosso de uma sociedade fundada
sobre o respeito ao próximo e a submissão ao império das leis.
Esse
esforço se dá basicamente em duas frentes.
A
primeira delas se refere às incansáveis tentativas de contenção da liberdade de
expressão, garantida pela Primeira Emenda da Constituição. Materializado na busca incessante
por meios legais de coibir opiniões divergentes, esse empenho compreende desde
a neutralização orwelliana da linguagem proposta pelo politicamente correto,
até a tentativa de criminalização da livre expressão inerente à prática de
imputar o rótulo de“discurso de ódio” a qualquer opinião, sem critério definido.
Não
é que discurso de ódio não exista e não carregue em si uma ameaça ao alvo de
sua virulência. A questão é a importância superdimensionada que se dá a ele. A
análise dos contextos histórico-sociais em que discursos de ódio ocasionaram cataclismos
sociais mostra que a ação dos seus perpetradores contou com a fragilidade das
instituições daquelas sociedades e/ou com a conivência silenciosa (quando não o
estímulo declarado) dos governos.
No
ano de 1994, em Ruanda, a responsabilidade da Rádio Des Mille Collines (ligada ao
governo hutu de Juvenal Habyarimana) no genocídio tutsi não pode ser contestada.
A campanha de desumanização empreendida pela emissora certamente contribuiu
para disseminar o ódio entre a maioria hutu a ponto de erradicar de sua
humanidade qualquer resquício de civilização. O que não se leva em conta é a
incapacidade do estado em conter as ondas de violência, reflexo da histórica instabilidade
política do país. Ao se empenhar ativamente no extermínio tutsi, as forças de
coerção do estado, controladas pela maioria hutu, ignoraram seu dever de
protegê-los enquanto cidadãos ruandeses. O problema aqui é civilizacional. Foi fragilidade
das instituições democráticas da nação africana o que possibilitou o controle
do estado por gangues racistas e a subsequente tragédia.
Há
alguns anos, nos Estados Unidos, uma dupla musical formada por garotas de
descendência ariana causou estardalhaço devido ao teor de suas letras. Abertamente
nazista, o grupo Prussian Blue
vendeu 91 mil cópias em 2006, sucesso ocasionado, é claro, pelas
garantias da Primeira Emenda da Constituição Americana. Mesmo entoando um
discurso odioso, não se viu em decorrência disso nenhum massacre de judeus ou
negros nos Estados Unidos. Na direção diametralmente oposta a isso, ao saber do
“trabalho” das garotas, os próprios vizinhos de bairro direcionaram uma brutal rejeição à família delas. Cartazes com os dizeres “No hate here” eram praticamente onipresentes na vizinhança e foram determinantes para mantê-los
acuados, tornando inócuo qualquer proselitismo racista que eles por ventura
tentassem empreender.
Comparando-se
as duas situações, pode se tirar algumas conclusões. Diferentemente do que
ocorreu em Ruanda, nenhuma rádio ligada ao estado ou a membros do governo
federal americano deu suporte ao ódio nacional socialista propagado pelo
Prussian Blue. As pessoas que se identificavam com o discurso da “banda”, mesmo
que em minoria, não empreenderam nenhuma onda de atentados contra negros,
judeus ou homossexuais simplesmente porque sempre souberam que se o fizessem,
iriam ser caçados como animais e devidamente enjaulados (talvez até executados,
a depender da unidade da federação), como ocorre com qualquer fora da lei num
local civilizado. Mesmo tendo seu direito à livre manifestaçao pacífica
assegurado pelo estado, tanto as meninas da “banda” quanto os grupos
neonazistas que davam suporte, sempre foram vigiados de perto pelos orgãos de
segurança do estado. Ao menor sinal de delinquência promovida por esses
degenerados, eles seriam prontamente punidos. Independente de qualquer
estímulo, seres humanos são seres pensantes e têm capacidade de escolha. Por
mais que se defenda a proibição e criminalização do discurso de ódio (como
acontece na maioria dos países europeus, por exemplo) as evidências apontam
que, apesar de infame e primitivo, o impacto que ele causa em nações
civilizadas com instituições sólidas é irrelevante. Se as diatribes proferidas
pelas pobres criaturas do Prussian Blue foram praticamente inócuas nos EUA,
isso só se deve a uma razão: não é o discurso que mata. As pessoas matam.
Ainda
dentro do esforço totalitário em minimizar as liberdades garantidas pela
Primeira Emenda, não pode deixar de ser notado o circo que está sendo montado
ao redor da bandeira da armada confederada. No que claramente é parte de uma
agenda muito mais abrangente, firmemente fincada no impulso suicida de
ridicularizar e destruir todo um arcabouço de leis, tradições e instituições
que permitiram à civilização ocidental ascender da barbaridade à hegemonia
sócio-tecnológica-cultural no mundo, o estandarte está sendo tratado como o
espantalho midiático da vez.
A
histeria bovina coletiva em torno do mais famoso símbolo confederado se apoia
na crença de que se trata de um ícone de orgulho racista. Não há como negar que
a Constituição da Confederação garantia explicitamente a permanência
da escravidão (apesar de proibir o comércio internacional de escravos). Inconcebível,
no entanto, é a canalhice ideológica que enxerga equivalência moral entre
confederados e nacional socialistas. A escravidão defendida pelos separatistas
americanos tinha razões meramente econômicas. Por se tratar de sociedades pré
industriais cujas economias eram baseadas em monoculturas de exportação, os
estados sulistas adotavam a servidão humana por ser este o único meio
economicamente viável de produção em massa em meados do século XIX, quando a
Revolução Industrial ainda engatinhava fora da Grã-Bretanha. Por mais imoral que seja a prática, ela
já foi necessária. Felizmente a evolução da Revolução eliminou a necessidade de
se tratar seres humanos como máquinas ao tornar possível a mecanização da
agricultura, o que contribuiu enormemente para o enriquecimento geral da humanidade nos séculos posteriores.
A
escravidão defendida pelos nacional-socialistas em pleno século XX, ao
contrário, se apoiava na convicção de sua suposta “superioridade racial” em
relação a outros grupos étnicos. Logo, as justificativas para tal eram
simplesmente ideológicas. Só mesmo uma ralé intelectual, massa de manobra de
descontrolados saltimbancos midiáticos, para acreditar no conto de fadas de que
um mero símbolo de orgulho sulista está no mesmo patamar moral de uma insígnia
de morte e escravidão como a suástica.
Por
outro lado, se a perseguição demente à bandeira confederada se justifica por
ser ela um símbolo de uma sociedade erguida sobre o modo de produção
escravista, por que não demonizar também a bandeira britânica, já que representou
um império que usou largamente a escravidão? Por que não dinamitar a
Esfinge e as Pirâmides de Gizé, símbolos de outra civilização adepta do servilismo,
construídos com o suor e o sangue de milhares de seres humanos, como, aliás,
ocorreu com todas as outras Sete Maravilhas do Mundo Antigo? Não seria o caso
de pôr abaixo o Coliseu e de abandonar o Direito Romano, já que são
contribuições de outra sociedade imperial escravocrata? E por que não ir mais a fundo e rejeitar logo
a Democracia e a Cultura Helenística, heranças de outra civilização que se
servia da mesma prática?
Foi
exatamente esse tipo de alienação ideológica que levou um rebanho de muares a
se manifestar efusivamente durante a remoção da bandeira confederada do capitólio da Carolina do Sul.
Com direito a cobertura em tempo real, a turba de idiotas úteis exibia sem
pudor sua ignorância bovina em rede nacional, convictos, do alto de sua burrice oicofóbica, de que
estavam agindo para melhorar o mundo. Nessa alucinação coletiva habilmente
orquestrada, a demonização da cultura confederada é só aparência, porque a luta
real é contra a Civilização Ocidental. Tal qual os talibãs, que nos delírios
megalômanos de sua fúria louca destruíram os Budas de Bamiyan, mandando pelos
ares um milênio de História Humana, esses fanáticos seculares exigem o fim de
qualquer símbolo que represente uma ameaça à sua religião política.
Quem
enxerga a comparação como exagero sempre pode se perguntar onde estavam esses asnos
manobrados em abril, quando uma bandeira
comunista foi içada no capitólio de Washington, por ocasião da visita de um embaixador
chinês. Não fosse um punhado de cidadãos livres a exigir a sua retirada, sem
qualquer estardalhaço ou cobertura midiática em tempo real, a infame insígnia
totalitária, símbolo-mor da mais abjeta escravização em massa da história,
continuaria tremulando em tom de deboche na terra da liberdade.
Se
o ataque contínuo às garantias individuais previstas na Primeira Emenda visam
limitar os direitos e liberdades a tanto custo conseguidos, a segunda frente de
ação contra a soberania do indivíduo, refletida na verdadeira cruzada
empreendida contra o direto de portar e manter armas de fogo garantido pela
Segunda Emenda da Constituição, se configura no meio que esses setores encontraram de assegurar
a implementação de sua agenda coletivista com resistência mínima.
É
um engano persistente a crença de que o direito de acesso a armas de fogo foi
pensado pelos fundadores dos EUA como uma forma de assegurar o direito do
indivíduo à auto defesa. Apesar de essencial e indispensável, essa garantia é
secundária frente à potencialidade ilimitada que os governos humanos têm de se
converter em regimes totalitários. Foi a recusa dos fundadores em deixar a
população à mercê de tiranias internas e externas, o que levou o Japão Imperial
a desistir da ideia estúpida de invadir a costa oeste dos EUA por terra durante
a Segunda Guerra Mundial, temendo encontrar “um homem com um fuzil atrás de cada folha de grama”.
Ignorando
completamente esses fatos, e muito mais que isso, se empenhando ativamente para
remover de seu caminho a extraordinária resistência que uma população armada
representa para suas pretensões tirânicas coletivistas, facções progressistas
reunidas sob a égide do Partido Democrata dos EUA dedicam incansáveis esforços
na busca de meios para contornar a Segunda Emenda da Constituição. Barack
Obama, o superman progressista que não se intimida em ameaçar passar por cima do parlamento para “expandir oportunidades para mais famílias
americanas”, não se furta de, sempre que possível, dançar
sobre as covas das vítimas de maníacos armados, na tentativa de demonizar
publicamente todo aquele que discorda de sua agenda, tratando-os como cúmplices
desses assassinatos, só porque têm a petulância de achar que as pessoas podem
se defender por si mesmas.
As
liberdades asseguradas pelas duas primeiras emendas da Constituição Americana
são eventos únicos na história da humanidade. A iniciativa de se impedir o
exercício do poder absoluto a partir da concessão aos governados de irrestrita
liberdade de expressão e do direito de possuir meios de se defender contra uma
eventual tirania do governo, nada mais é do que um lapso momentâneo de razão na
sucessão de selvageria e abusos de toda sorte que recebe o nome de história humana. Talvez por isso haja
quem incorra no engano de pensar que a supremacia americana no mundo se deva ao
fato de sua população ser genética ou intelectualmente superior às outras. Se
cubanos ou mexicanos arriscam a vida para entrar nos Estados Unidos e não o
contrário, se pessoas de todo mundo deixam seus países para desfrutar da
liberdade e da prosperidade que encontram lá, isso só se explica por uma razão:
eles não são humanamente superiores a ninguém, apenas possuem um melhor conjunto
de princípios.
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