Em Brave New World (Admirável Mundo Novo, no Brasil) Aldous
Huxley descreve uma sociedade futurista na qual todos os problemas e
contradições sociais estariam totalmente superados e a tão almejada paz social
plena teria sido finalmente atingida. Publicado em 1932, esse livro, juntamente
com Darkness at Noon (Arthur Koestler) e 1984 (George
Orwell), dentre outros, representa um gênero literário conhecido como Distopia, que se caracteriza pela
contestação feroz da antiga crença ocidental de que o inevitável progresso
técnico da humanidade traria necessariamente consigo a evolução moral da
espécie.
Apesar das semelhanças, um fator torna Brave New
World singular. Diferentemente das demais, esta é a única obra que
descreve um poder tirânico que se impõe sem utilizar violência elementar. No
governo mundial de Huxley, as pessoas continuam cativas, é verdade, a diferença
é que elas não se dão conta disso. Pela primeira vez um poder totalitário
irresistível consegue reinar absoluto e eliminar o principal efeito colateral
de qualquer empreendimento erguido com o propósito de controlar seres humanos irrestritamente:
a ameaça constante de rebelião.
Ao imaginar uma sociedade na qual as pessoas são controladas pelo
prazer, o pensador britânico se tornou o escritor que melhor pressagiou a
modalidade de tirania do futuro. Produto direto do retumbante fracasso
político/econômico do socialismo marxista no século XX, o atual estado de bem estar
social nasce da união entre sua vertente fabiana (não revolucionária) e a
economia de mercado.
Huxley alicerçou o sucesso da tirania de seu livro na capacidade
do governo de se aproveitar do quase infinito apetite humano por distrações.
Através de condicionamento hipnopédico e de técnicas avançadas de engenharia
social, as pessoas são ensinadas a se adequarem à servidão. A casta governante
finalmente entendeu a causa da ruína dos despotismos antigos: violência gera
violência. Se ensinadas a venerar seu cativeiro, as pessoas não só se acostumam
a ele, como vão defendê-lo ferrenhamente.
Na sociedade rigidamente estratificada do livro, as pessoas não
nascem. São produzidas em série. No topo da pirâmide social, os Alfa são
concebidos de modo a explorar todas as suas potencialidades humanas. Sendo os
únicos cujo desenvolvimento embrionário não é deliberadamente sabotado através
da adição de álcool no sangue, eles formam a elite que administra a Nova Ordem
Mundial de Admirável Mundo Novo. Após estágios intermediários,
segregados entre si pelo aumento gradativo de etanol em seu pseudo-sangue
fetal, eis que são apresentados os Ípsilon. Intencionalmente cultivados para
serem intelectualmente deficientes, esses párias perfeitamente harmonizados são
os responsáveis por todo trabalho braçal. Devido ao condicionamento hipnopédico
que recebem, todos são estimulados a abraçar cegamente sua condição. “As
crianças Alfa (...) trabalham muito mais que nós porque são formidavelmente
inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta, porque não
trabalho tanto. E, além disso, somos muito superiores aos Gamas e aos Deltas
(...). E os Ípsilon são ainda piores.” Essa é a mensagem com que os
cérebros Beta, localizados logo abaixo dos Alfas na hierarquia social, são
lavados toda noite ao dormir. Cada casta recebe a mesma pregação, adaptada de
modo a ressaltar os pontos positivos de sua posição.
Às vezes a vida imita a arte de modo tão visceral que determinadas
previsões do passado parecem produto de clarividência. Um viajante do tempo
proveniente dos anos 1930 que tivesse a capacidade estóica de analisar o atual
panorama cultural brasileiro sem sentir ânsia de vômito, só poderia imaginar
que Aldous Huxley fosse uma espécie de feiticeiro. Ao perceber como o homem
comum é induzido a se comportar de modo a atender determinados interesses, o
observador talvez desconfiasse da existência de um complô seriamente empenhado
em converter homens em gado.
A ascensão ao poder máximo de um partido historicamente associado
com a defesa de causas sociais, que por se assumir representante dos pobres e
desfavorecidos se impunha como modelo de moralidade (como se uma coisa
implicasse necessariamente na outra) e cujo representante máximo encarnava o
arquétipo do brasileiro humilde que vence na vida (o retirante nordestino que
sai da pobreza do Nordeste e se alça à liderança do maior país da América
Latina), trouxe consigo expectativas que dificilmente seriam atingidas por
grupos políticos mais competentes. A despeito dos sucessos de uma gestão que entrou
para a história do Brasil como a maior experiência de distribuição de renda já
empreendida até então, convém analisar alguns pontos dos métodos desse governo e
seus impactos no panorama cultural brasileiro.
O desempenho econômico da primeira gestão Lula (2003-2006) foi
como uma overdose de endorfina para quem não via com bons olhos o pragmatismo econômico
social-democrata do PSDB. Apesar de contrariar setores mais à
esquerda de sua base de apoio ao publicar a famosa Carta ao Povo Brasileiro, na
qual se comprometia, entre outras coisas, a honrar os compromissos financeiros
das gestões passadas e a preservar os pilares macroeconômicos então em vigor,
dados como a redução da extrema pobreza em 75% entre 2001 e 2012 conferiram
um status quase impecável à política econômica da primeira gestão do PT no
comando do Brasil.
O que ocorre é que os entusiastas desse modelo geralmente deixam
de mencionar alguns detalhes. Ao pintar Lula como o gênio econômico que cobriu
a dívida externa do Brasil com reservas em moedas fortes, geralmente é ignorada
a participação da China no processo. Aproveitando-se da brutal valorização do
preço das commodities, ocasionada pelo extraordinário
crescimento chinês dos anos 2000, qualquer um poderia ter empreendido proeza
similar. Quando realmente surgiu a oportunidade de mostrar a que veio, Lula
mostrou ser apenas um político comum. Da mesma forma que o Milagre
Econômico do governo Médici na década de 70, o “milagre” do PT não
passou de um vôo de galinha. Talvez imaginando que os preços das
matérias-primas fossem se manter no mesmo nível eternamente, o então presidente
escolheu o caminho fácil: preferiu comprar a consciência dos mais pobres
expandindo o crédito, não aproveitou o momento para investir o que deveria em
infraestrutura e não se preocupou em incentivar a mudança das bases da
economia, extremamente dependente do setor primário. O previsível resultado é
que, passada a bonança, o partido que tanto se vangloriou de ter reduzido o
número de pessoas que viviam com menos de US$ 1/dia, amarga hoje o primeiro aumento do indicador em uma década. Como
se isso não bastasse, ainda vê a reputação de bom pagador do país ir pelo ralo.
Passado o frenesi da acidental farra econômica, ainda restava ao
PT sua imagem. Desde o auge do processo de impeachment de Fernando Collor em
1992 (aquele tempo em que não era golpe ainda), o partido ostentou como nunca
se viu na história deste país a pose arrogante do diferenciado,
moralmente superior a todo o resto. Lula virou ícone da cultura pop e era
venerado como o semideus que ia acabar com a corrupção endêmica do país.
A questão é que, quanto mais alto o coqueiro, maior a queda. Mal
completado o primeiro mandato à frente do país, os paladinos da moral protagonizaram,
em 2005, o maior escândalo de corrupção que se tinha notícia até então. Mesmo
que o mega esquema de distribuição de propinas e superfaturamento de obras da
Petrobras supere em muito a compra do parlamento de 2005, o impacto daquele não
se compara ao deste. Por ser o primeiro sintoma claro de que a diferença do PT
para os outros partidos é só a cor da bandeira, o escândalo do mensalão foi a
pá de cal no que restava de sua imagem. A partir de então, a agremiação que
encarnava todas as virtudes passou a simbolizar o que há de pior em política.
Eis que, devido a tudo isso, quando se achava que o PT estava no
fim da linha, o verdadeiro milagre aconteceu. Contando com a incompetência e a
condescendência da “oposição”, completamente incapaz de aproveitar o momento
para liquidar a carreira política de qualquer um que, àquela altura, conseguia
não se envergonhar em ser associado ao nome do partido, Lula consegue a
reeleição. Muito embora o crescimento robusto da economia (3,2% em 2005 e 4% em
2006), traduzido socialmente na expansão do crédito que deslocou um contingente
enorme da pobreza para as classes médias tenha ajudado o candidato petista, uma
popularidade abaixo de 40% em ano eleitoral seria
mais do que suficiente para decretar seu ocaso político num cenário onde a
oposição fosse minimamente eficiente.
Após o improvável sucesso eleitoral no auge do maior esquema de
corrupção até então registrado (do qual conseguiu se desvencilhar mesmo se
encontrando em seu epicentro), num pleito onde, ao se dar ao luxo de faltar a
um debate em rede nacional (desmarcando uma hora antes do início, inclusive),
demonstrou um desprezo sem equivalente pela população e pelo processo
eleitoral, Lula sabia que permaneceria no poder única e exclusivamente por
causa da solidez das instituições do Brasil. Já não havia qualquer sustentáculo
moral que o habilitasse a exercer o cargo máximo da República. Se desde sempre
ele soubesse que seu discurso moralista era puro embuste, antes tinha a seu
favor o fator surpresa, já que todo mundo podia ser enganado. Agora todos já
conheciam suas intenções. E ele sabia disso.
Ao constatar a previsível perda de vigor da atividade econômica do
país após a farra da supervalorização das commodities, e agora
órfão do manto moral que outrora ornamentava a aura do partido, Lula percebeu
que todas as máscaras tinham caído e ele não precisaria mais se preocupar em
manter as aparências. Vendo seu empreendimento econômico ruir por sobre as
próprias bases frágeis, o establishment petista viu a hora de
colocar em prática seu plano B.
Em paralelo a uma campanha massiva de terrorismo propagandístico, o partido enxergou na exaltação de suas
fraquezas a chave para se perpetuar no poder. Numa saída brilhante, a intelligentsia do
PT percebeu na glamourização da pobreza e da ignorância uma
forma de usar seus defeitos como escudo, de modo a atenuar o máximo possível a
percepção geral do fracasso retumbante do partido em cumprir suas
promessas. Da mesma forma como o governo de Brave New World consegue
manter todos rigidamente sob controle fazendo-os amar sua servidão, as mentes
mais brilhantes do PT viram num problema cada vez mais difícil de esconder, a
solução para todos os outros: da mesma forma que a tartaruga utiliza sua pesada
carapaça, que a torna tão lenta, para se defender, os parcos recursos
intelectuais de Dilma e Lula seriam exibidos não mais como uma mancha indelével
na reputação do Brasil como país, um lembrete de como o brasileiro não sabe
escolher seus representantes. A partir de agora a glamourização da
pobreza, da ignorância e da estupidez passa a ser a armadura que os torna
lentos, mas ao mesmo tempo fortes.
Nunca foi segredo que muito da popularidade de Lula junto às
massas ignaras sempre foi resultado de sua capacidade de capitalizar seu ar de
nordestino xucro e sua pose de ignorante. Como se apenas boas intenções (se é
que elas realmente existiram em algum momento) fossem suficientes para levar um
país adiante, talvez seu maior êxito político foi convencer que, mesmo
sendo inimigo dos livros, sua “vontade de fazer o
bem”, aliada a sua história de vida difícil seriam prova de sua honestidade e o
habilitariam a ser um bom governante. Até o dia em que sua verdadeira face foi
revelada isso funcionou como um relógio.
Quando não pôde mais continuar no poder, a estratégia teve de ser
modificada. Na falta de alguém com o mesmo apelo popular e tendo que amargar a
situação de ver os três sucessores naturais (Dirceu, Palocci e Genoíno) nas
páginas policiais dos noticiários, o partido não viu alternativa a não ser
indicar para a sucessão uma burocrata obscura sem qualquer experiência na vida
política. Dona de um carisma de bode velho e de uma capacidade retórica
simiesca, Dilma Roussef tinha como único diferencial em relação aos demais
candidatos o fato de ser mulher. Uma vez que apenas homens tinham assumido o
cargo máximo da República, isso certamente pesaria a seu favor junto à
militância bovina, mas ficou evidente que era necessária outra abordagem para
captar a atenção da parcela da população que trabalha.
Desse modo, o caminho escolhido pelo departamento de marketing do
PT foi investir na imagem da tecnocrata competente: a mulher forte por trás da
Petrobras. A “mãe do PAC”.
Não que isso tivesse feito qualquer diferença, mas, até que o petrolão
viesse à tona (gestado durante sua própria administração da estatal), foi
possível, aos trancos e barrancos, levar a imagem adiante. Foi apenas quando
ficaram evidentes seu despreparo gritante, seus parcos recursos intelectuais e
sua completa inabilidade política, que ela foi definitivamente acometida pela
síndrome do Lula desacreditado (em menor grau, é claro, já que dela nunca se
esperou muita coisa).
Foi nesse ambiente político que foi se instituindo progressivamente
no ideário coletivo o culto à favela. Resultado direto do fracasso
retumbante do PT em atender às expectativas que eles mesmos traçaram e da
completa desmoralização do partido após uma década do governo mais depravado da
história da República, essa nova modalidade de religião secular se caracteriza
pela exaltação e glamourização da pobreza e da estupidez, com
o intuito de acomodar as pessoas mais necessitadas (o alvo histórico da
retórica populista do PT) à sarjeta socioeconômica e cultural que o governo só
conseguiu perpetuar, de modo a facilitar a administração dessa situação em
benefício próprio.
Por mais que haja um esforço hercúleo da classe falante brasileira
em provar o contrário, favelas são locais insalubres onde prevalece a lei da
selva. Como em toda terra-de-ninguém, os mais fracos estão continuamente
submetidos aos caprichos de gangues de traficantes e milícias que impõem suas
vontades única e exclusivamente por meio da força bruta. Mesmo que o Estado
esteja infestado de toda sorte de criaturas iguais ou piores, há que se apontar,
pelo menos, a existência de um sistema legal de pesos e contrapesos que, bem ou
mal, limita seu poder de destruição. A Magna Carta da favela, por outro lado, é
a arbitrariedade tirânica de quem tem mais poder de fogo.
É por isso que toda tentativa de angelizar a paisagem só
pode interessar a quem tem a pretensão de se perpetuar no poder. Por não
passarem de uma cortina de fumaça que impede as pessoas de enxergar o fracasso
estrondoso do governo em cumprir sua função auto imposta de “melhorar sua vida”
(como se simplesmente sair do caminho delas não fosse a melhor forma de fazer
isso), esse perverso sistema de hipnotização em massa só serve para maquiar a
dura realidade para quem vê, voluntária ou involuntariamente, o Estado como a
apoteose da civilização: nas favelas ele está de joelhos, as pessoas estão
entregues à própria sorte e não há nenhuma solução para essa situação no
longo-médio prazo.
Desde que Edward Bernays teve a idéia de usar a propaganda para
explorar comercialmente a imensa capacidade humana de ser feito de otário, a mídia
se apresentou como o meio ideal. No caso do Brasil, não poderia ser diferente.
A cultura pop foi inundada de referências à favela. Desde a novela das nove que
ostenta o nome de uma “comunidade” no título e conta a história da moradora que
“sonha com uma vida melhor”, ao programa dominical comandado pela apresentadora
que angariou fama e fortuna fazendo pose de ralé, passando pela profusão
interminável de “cantores” de funk tatuados que saíram da miséria latindo
pornografia grosseira e fazendo apologia ao crime, o que já foi visto como um
lugar perigoso, destinado a pessoas sem opção, tem virado o paraíso da nova
modalidade de cultura então em vigor no ideário popular. O espaço que o rapper
aliciado com esmola estatal consegue em rede nacional para ofender opositores
do governo, a atenção exagerada recebida pelo casal de “músicos” que expõe a
crise conjugal em rede nacional para voltar aos holofotes e o culto bovino ao
jogador de futebol que virou um semideus por encarnar com perfeição o espírito
favelado do novo rico (aquele que sai da favela, mas a favela não sai dele),
nada mais são do que sintomas de uma mesma doença: a favelização cultural em
marcha no Brasil.
As conseqüências disso não poderiam ser mais evidentes.
Um projeto social organizado por uma ONG de atuação em favelas, em
parceria com o MIT e o Ford Institute, tem como objetivo identificar moradores
de comunidades com talento para criar “inovações tecnológicas”. Por trás da
idéia aparentemente altruísta, se esconde um desprezo por gente pobre que, de
tão sutil, é impossível de ser entendido no âmbito da maldade elementar. Um mal
tão velado, fino e involuntariamente irônico que possivelmente nem mesmo os
detentores desse sentimento torpe têm condições de destilá-lo do turbilhão de
preconceitos, idéias erradas, e pressuposições equivocadas que os levam a
endossarem tamanha monstruosidade moral.
A imagem que orna o título da matéria que apresenta a iniciativa mostra três moradores de favela que
participam do projeto, dos quais se destaca uma moça de 24 anos, negra, grávida
do segundo filho. Estudante de Serviço Social da UFRJ e bolsista de um programa
do Ministério da Cultura, a jovem fala com empolgação sobre sua habilidade em
utilizar lixo para resolver os problemas de “engenharia doméstica” que surgem
no seu dia a dia. Um em particular, enfatizado pela reportagem, mostra de
maneira inequívoca a real função desses projetos com “consciência social”.
Ao expor como a moça contornou a carência de um ventilador,
utilizando recortes de cartolina para refrigerar um quarto quente num dia de
calor, o enfoque delinquente do texto procura utilizar a engenhosidade dela
para maquiar o absurdo camusiano presente no fato de alguém não dispor de
míseros R$ 30 para comprar um simples aparelho de ventilação no paraíso do bem
estar social petista. Espécime típico do segmento da população que pulula na
retórica populista do partido, a jovem é o retrato mais fiel do retumbante
fracasso da estratégia por ele adotada para tirar as pessoas da pobreza: mesmo
não dispondo de tão irrisória quantia, ainda assim, possui dois filhos. E está
feliz e satisfeita com isso. Ao mascarar o fato de a moça precisar catar lixo
para ter um mínimo de conforto como um suposto esforço para “romper com
preconceitos com materiais recicláveis”, o texto cumpre com perfeição sua
função pedagógica huxleyana de manter as pessoas pobres estagnadas e contentes
na latrina sócio-econômica que aprenderam a amar.
Nas palavras de um integrante da ONG: “A gambiarra é
genuinamente favelada”. Ele não poderia estar em maior consonância com o
conceito do projeto social do qual faz parte. O próprio nome, “Gambiarra
Favela Tech”, traduz um desprezo cínico por essas pessoas, uma ironia fina
com sua situação de miséria, que, de tão odientos e desproporcionais, só se
comparam à amplitude da loucura ideológica que consegue enxergar caridade no
assassinato inclemente de sua dignidade.
É unicamente sob a mesma ótica insana que é possível tentar
entender o causo a seguir que, de tão surreal, parece fruto
de alucinação lisérgica.
Um rapaz de classe média, cosmopolita e educado em colégios
particulares, faz amizade com moradores de uma favela adjacente ao bairro nobre
em que reside. Resolve então abrir mão da educação de elite a que tinha acesso
para ingressar num colégio estadual e estudar junto com os novos amigos. Em
seguida, decide não cursar faculdade e resolve abandonar a confortável vida que
levava para viver na favela. Enfim, casa com uma moça da “comunidade” e arruma
um emprego de motoboy em uma pizzaria.
Eis que um delegado da polícia federal é assaltado próximo à
ocupação. Em meio à investigação, ao cruzar dados de suspeitos do crime, a
equipe responsável pelo caso descobre no Facebook fotos em que o rapaz aparecia
junto com os meliantes. Como é natural, ele passa então a figurar na lista de
suspeitos. A apuração avança sobre uma quadrilha de roubo de carros. Ao
levantar ocorrências de delegacias da região, o delegado associa as imagens a
características descritas por vítimas dos assaltos. Em dois casos, ocorridos em
2013, algumas delas reconhecem o rapaz dentre os acusados. Como de praxe, sua
prisão preventiva é decretada.
A decisão judicial teve repercussão nacional no meio acadêmico. O
frenesi, registrado em 16 estados incluindo São Paulo (onde os fatos se
passaram), se baseia nas alegações de que o rapaz foi detido ilegalmente (já
que crime de roubo é de competência estadual e um delegado federal lidera a operação)
e de que o motivo principal da ação policial é o fato de ele “ter
ultrapassado certas barreiras de inclusão social”.
É de uma vigarice atroz rotular de “ilegal” uma prisão preventiva, decretada
após extenso trabalho de uma investigação iniciada num crime do qual o próprio
agente federal foi vítima, só porque o mesmo resultado deveria
ser obtido a partir da investigação de agentes estaduais. Esse apego obsessivo
a pormenores técnicos não passa de uma tentativa mal disfarçada de assegurar
impunidade ao comportamento duvidoso do rapaz. Óbvio que a simples presença
dele em fotos na companhia de suspeitos não determina, por si só, sua culpa. Já
isso associado ao fato de ele ter sido reconhecido por duas vítimas
de assaltos torna sua apreensão nada mais do que um procedimento
padrão da polícia.
O que se apresenta aqui, no entanto, não é um protesto em favor da
aplicação ortodoxa da legislação criminal do estado de São Paulo. A história de
um rapaz de classe média que “supera preconceitos”, “ultrapassa barreiras de
inclusão social” e é punido “ilegalmente” pelo sistema judiciário reacionário,
racista, elitista e segregador do estado de São Paulo é a versão “progressista”
do mito de Prometeu. Ao abrir mão de sua “situação privilegiada” para trazer o
fogo de sua presença iluminada à comunidade das pobres almas desassistidas e
injustiçadas por um sistema desumano que só privilegia os ricos e brancos, o
bravo jovem atraiu a fúria dos deuses do estado e, como punição, tem seu fígado
devorado pela intolerância preconceituosa desses “fascistas” que odeiam pobres
e se ressentem em vê-los viajando de avião.
Certamente resultado do provável proselitismo ideológico dos pais,
ambos ligados a movimentos sociais e à militância de esquerda, o destino do
rapaz que abriu mão de uma carreira profissional promissora para morar numa favela
e trabalhar como entregador só pode ser entendido no âmbito do culto à favela.
Diferentemente das pessoas comuns, que se submetem a morar em favelas por falta
de opção, o caso do rapaz é mais enigmático porque mostra como idéias tem
consequências. O horror de duas aberrações morais que não hesitam em sacrificar
o futuro do próprio filho em nome de uma tara ideológica só piora quando se
constata que esse picadeiro só está montado porque o rapaz agiu de modo
suspeito na condição artificial de favelado. Difícil acreditar que sua mãe,
professora de psicologia da USP, fosse dar a cara pra bater se ele fosse um
empresário bem sucedido flagrado lavando dinheiro única e exclusivamente
visando seu lucro pessoal, sem levar em conta nenhuma das “boas causas” que
possivelmente justificam o mensalão pra ela.
De uma sociedade cujos meios difusores de ideias estão infestados
de revolucionários comprometidos mais com proselitismo ideológico do que com a busca
honesta da verdade não se poderia esperar um panorama cultural muito diferente.
É o desprezo que Marx sentia pelos
pobres que explica porque os governos que se dizem mais preocupados com os
necessitados são justamente os que mais insistem em rebaixá-los, humilhá-los e
tratá-los como subespécie. Só assim é possível entender que o maior prejuízo
que eles causam às sociedades não é político ou econômico. Sua verdadeira
herança maldita é sempre legada às mentes das pessoas.
Muito bom!!!
ResponderExcluirEstou lendo isso um ano após ter sido postado e achei simplesmente genial!
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