domingo, 14 de maio de 2023

Os Pais do Holocausto: Como o Combate à Noção Cristã de Sacralidade da Vida Humana Levou o Ocidente à Barbárie

 


“(...) Pois eu estava com fome e vocês me deram de comer; eu estava com sede e me deram de beber; eu era estrangeiro e me receberam em sua casa; eu estava sem roupa e me vestiram; eu estava doente e cuidaram de mim; eu estava na prisão e vocês foram me visitar. (...) Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram.”

Mateus 25; 35-40

        A série Hunters, do Amazon Prime, conta a história de um grupo de judeus caçadores de ex-nazistas que escaparam do tribunal de Nuremberg e conseguiram se estabelecer nos EUA da década de 1970. À medida que a trama se desenrola, o espectador é apresentado a uma organização que busca infiltrar neonazistas na burocracia governamental americana a fim de erigir o Quarto Reich no país.
        Dentre os membros do grupo, Travis Leich se destaca por ser uma espécie de quebra-ossos fanático, adepto de uma visão de mundo darwinista. A certa altura, ele se depara num avião com uma mãe a impedir o filho alérgico de comer um doce de amendoim. O discurso da personagem é revelador da essência de todo movimento anticristão de jaez progressista: ao censurar a mãe que zela pela saúde do filho, ele calmamente explica como ela presta um desserviço à espécie por impedir que um membro mais fraco pereça, assim enfraquecendo-a, já que a criança poderá transmitir seus genes no futuro e, com eles, sua alergia.  
        Essa visão da humanidade como espécie passível de melhoramento genético consciente, tal qual animais de fazenda, engloba a noção de que a saúde da linhagem é mais importante que a dignidade do indivíduo e chama-se eugenia. A origem dessa crença jaz na rejeição radical à doutrina cristã, segundo a qual a humanidade ocupa uma posição central na Criação, acima dos demais animais.
        O corolário da concepção cristã de humanidade é, naturalmente, a noção de dignidade humana, inexistente na cultura ocidental até a conversão de Constantino. A antiguidade clássica foi o tempo do império do mais forte, em que as pessoas doentes, fracas e sem linhagem eram vistas com desprezo. Caridade e cuidado com os mais necessitados eram vistos como fraqueza, o que deu origem a uma lógica sacrificial para justificar o descarte impessoal de vidas consideradas como inferiores.
      Platão escreveu que um homem impossibilitado de trabalhar em virtude de doença deve ser abandonado à morte e que a medicina deveria se concentrar apenas naqueles que não padecessem de nenhuma deficiência. Sêneca e Cícero pregaram o infanticídio de crianças deformadas. Como escreveu Rodney Stark, a filosofia clássica “considerava a piedade e a compaixão como emoções patológicas, defeitos de caráter que os homens racionais deveriam evitar”. ¹

A Revogação da Lei da Selva

         A ascensão da influência da Igreja Católica encerrou essa cultura de morte ao impor a sacralidade da vida humana como dogma inegociável. Como criado à imagem e semelhança de Deus, o homem faz jus a uma dignidade da qual carecem as demais criaturas. É desse ambiente que brota, por exemplo, a rejeição intransigente que a Santa Sé destina ao divórcio até hoje, pois na antiguidade era um meio de impedir o homem de abandonar a família à penúria para ir atrás de outra mulher.
     Da mesma forma, é o que explica o porquê de as primeiras denúncias contra os maus tratos infligidos contra os nativos americanos pelos colonizadores espanhóis terem partido justamente de sacerdotes missionários do Novo Mundo. É sintomático da influência cristã na Civilização Ocidental que, como em raríssimas ocasiões na história, um poder imperial tenha lidado com uma crise de consciência em virtude da forma como trata povos subjugados a seu domínio.
        Nas palavras de Thomas E. Woods, “(...) nenhum dado histórico permite supor que Átila, o rei dos hunos, tenha tido qualquer escrúpulo moral em suas conquistas, nem que os sacrifícios humanos coletivos que os astecas promoviam e que consideravam tão fundamentais para a sobrevivência de sua civilização tenham provocado entre eles sentimentos de autocrítica ou reflexões filosóficas que pudessem se comparar àqueles que os erros de comportamento europeus provocaram entre os teólogos da Espanha do século XVI.”²
      Antonio de Montesinos, Bartolomé de Las Casas e Pedro de Córdoba entraram para a posteridade por denunciarem as brutalidades cometidas sob o sistema de encomienda. Inspirado em São Tomás de Aquino, Francisco de Vitória defendeu que a dignidade a que tem direito todo ser humano deriva de sua condição de homem, não de que seja um fiel em estado de graça. Além disso, foi enfático em afirmar que nenhum homem deve ser privado de sua capacidade civil ou do direito de usufruir dos próprios bens por estar em pecado mortal. Em suma, as garantias do direito natural se estendem para além dos cristãos, a todo ser humano.
      E isso, nunca é demais lembrar, só foi possível graças à idéia revolucionária de que a criação à imagem e semelhança de Deus confere um status inviolável à pessoa humana. Dado o fato de que, nas demais tradições abraâmicas isso é um privilégio reservados aos fiéis (Islamismo) ou ao povo eleito (Judaísmo), essa é uma conquista que, dentre as grandes religiões da história, apenas o Cristianismo pode reclamar.
      O ocaso do Medievo viria a provar que tinha chegado ao fim o interstício histórico no qual essa visão de humanidade prevaleceu entre os intelectuais. Apesar de antiga, a cultura sacrificial anterior à era cristã tinha mais um aspecto de tradição, um conjunto de práticas e entendimentos cimentado pelo tempo e transmitido involuntariamente de geração a geração. Na modernidade é que ela adquiriu o status cientificista que preparou o terreno para a eugenia e os horrores do século XX. E foi Charles Darwin quem fincou a pedra fundamental desse edifício.

Primeiro a Espécie, Depois o Indivíduo

      Em A Origem das Espécies o naturalista britânico formalizou o conceito de seleção natural, segundo o qual, dada a luta pela sobrevivência num ambiente hostil, apenas os indivíduos melhor adaptados ao meio seriam capazes de transmitir seus genes às gerações posteriores. Assim sendo, a própria natureza age como melhoradora da linhagem genética das espécies ao permitir a sobrevivência apenas dos mais aptos. Curiosamente, Darwin tomou o cuidado de não aplicá-la à humanidade em si neste primeiro momento. Isso ele faria uma década depois, em 1871, ao publicar o menos famoso A Descendência do Homem.
      Escreve ele, tecendo admoestações à caridade típica das sociedades ocidentais: “Entre os selvagens, os mais fracos física ou mentalmente são logo eliminados (...). Nós, homens civilizados, por outro lado, fazemos o máximo que podemos para reprimir esse processo de eliminação (...). E eis que os membros mais fracos de uma civilização propagam suas crias. Ninguém que já tenha se dedicado à criação de animais domésticos pode duvidar que isso é extremamente ofensivo à raça humana. (...) raramente um homem é tão ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzam.”³ (...) “Se (...) várias limitações (...) não forem capazes de prevenir que os (...) membros inferiores da sociedade cresçam em maior escala e rapidez que a classe dos melhores homens, a nação irá regredir (...).” (4)
     Primo de Darwin, Francis Galton, entretanto, não esperaria tanto tempo para inferir as consequências lógicas (no que diz respeito à espécie humana) do que leu em A Origem das Espécies, ao cunhar o termo eugenia ainda em 1865. Ao rejeitar o status de sacralidade que a doutrina cristã reservava à vida humana, colocando a humanidade no mesmo patamar que os demais animais, o efeito da teoria da seleção natural foi simplesmente dar subsídios “científicos” a quem, a partir de então, se propusesse a relativizar qualquer tipo de reprovação moral a respeito de se tratar homens como animais.
    Muito embora sempre tivesse havido escravidão negra e indígena nas colônias européias além-mar, junto dela jazia tanto o atenuante, por assim dizer, de que era um imperativo econômico da era pré-industrial, quanto a mácula moral indelevelmente impressa pela influência cultural cristã. Não à toa, foram os próprios cristãos quacres a iniciarem o movimento abolicionista no ocidente, a primeira civilização a extinguir a escravidão e a dar exemplo às demais, nunca é demais lembrar.
     O tipo de escravidão que ressurgiu no Terceiro Reich, por outro lado, não tinha razão econômica, e sua origem foi muito mais ideológica, fundada na concepção darwinista de que judeus, negros e eslavos não passavam de  sub-raças das quais os arianos tinham o dever moral de dispor da maneira que melhor lhes aprouvesse para seus propósitos. Nesse sentido, os nazistas nada fizeram a não ser se guiar pelo que Darwin publicou em A Descendência do Homem: “Num período futuro (...) as raças humanas civilizadas irão (...) subjugar, exterminar e substituir, ao redor do mundo, as raças mais selvagens.” (5).

A Moral de Aristocrata e a Moral de Escravo

        Seguindo a mesma linha, ao formular o conceito de moral de escravo, Nietzsche deu sua parcela de contribuição no esforço de cimentar, nos meios intelectuais, a rejeição ideológica à caridade cristã. Segundo ele, o Trono de Pedro seria um dos principais responsáveis pelo que chamou de decadência da civilização ocidental porque, ao institucionalizar a caridade, enfraqueceu o homem.
    “A vida é essencialmente apropriação, danificação, dominação daquilo que é alheio e mais frágil.”(6) O filósofo alemão acreditava na dor como matéria prima de toda grandeza. Para ele, as civilizações só progridem ao custo da eliminação dos mais fracos e da guerra, sendo estes apenas “base ou andaime sobre o qual um tipo escolhido de homem [o aristocrata] pode educar-se para sua missão superior”.
    Para Nietzsche o que caracteriza esse tipo é justamente a disposição não apenas de sobreviver e coexistir, mas de dominar e subjugar os mais fracos. Para definir esse ânimo imperial, o alemão cunhou o termo vontade de potência, pedra fundamental de sua concepção de moral saudável, a moral de aristocrata, diametralmente oposta à cáritas cristã, a moral de escravo.
     Diferentemente do pragmatismo utilitário de Darwin, que via no extermínio do mais fraco um meio de aprimoramento da saúde da espécie, a guerra de Nietzsche contra os necessitados é ideológica, pois se assenta numa visão supremacista de mundo, segundo a qual é dever moral dos mais fortes subjugarem os mais fracos. A ética de Joffrey Baratheon, o mais nietzscheano dos personagens de Game of Thrones, segundo o qual a severidade é o preço a se pagar pela grandeza. O alemão não poderia ser mais claro: “Quase tudo aquilo a que damos o nome de ‘alta cultura’ está baseado na espiritualização da crueldade, no torná-la mais profunda: esse é meu veredicto.” (7)
 
Da Queda da Bastilha às Câmaras de Gás

        Tal a influência das ideias de Darwin e Nietzsche que o ambiente moral nos meios intelectuais europeus do século XIX se impregnaria de um amálgama ideológico composto pela rejeição à caridade cristã e pela concepção darwinista de que o progresso humano depende da eliminação dos considerados inferiores.
        Essa é justamente a matéria-prima de uma série de idéias perniciosas que se tornaram a marca registrada do ambiente de vale-tudo cientificista que se tornou o debate público da era vitoriana: do darwinismo social de Herbert Spencer, passando pela frenologia de Franz Joseph Gall e a antropologia criminal de Cesare Lombroso, culminando no racismo científico de Joseph de Gobineau. Todas elas saíram da caixa de pandora aberta, intencionalmente ou não, por Darwin e Nietzsche.
        Trazendo a humanidade para o mesmo plano moral das demais espécies e instituindo o desprezo ideológico pelos mais fracos, esse lodaçal retórico removeu todo tipo de escrúpulo da atuação dos imperialistas europeus na África e na Ásia. Em paralelo, a perda de influência cultural da Igreja impossibilitou o mesmo exame de consciência que acometeu os colonizadores espanhóis durante a colonização ameríndia. Diante desse cenário, o massacre dos hereros na Namíbia alemã, os campos de concentração ingleses durante a Guerra dos Bôeres e as amputações em massa no Congo belga, dentre tantas atrocidades que prenunciariam o que estava por vir no século seguinte, não passariam de consequência lógica.
       Da união macabra entre a técnica e a rejeição da noção cristã de sacralidade da vida humana nasceu o caráter industrial, inexistente em outras épocas da história, das crueldades que foram as marcas do século XX. Na verdade, isso nada mais é do que um efeito inescapável do mesmo racionalismo que inspirou a criação das guilhotinas como método eficiente e “científico” de matar pessoas durante o terror jacobino. As câmaras de gás nasceram na queda da Bastilha.

Prelúdio de uma Filosofia do Futuro

        É simbólico que o subtítulo de Além do Bem e do Mal seja Prelúdio de uma Filosofia do Futuro, haja a vista a previsão que o próprio filósofo fez do mal que suas as idéias iriam causar ao mundo. Por mais que seus defensores na academia possam pinçar declarações filsossemitas ou antigermânicas em seu trabalho, é inegável a influência que a visão de mundo imperial de Nietzsche exerceu não só nos nazistas, mas nos movimentos imperialistas da primeira metade do século XX.
        Por óbvio que não se pode atribuir o caráter racial da doutrina nazista ao alemão, uma vez que ele se dedicou não ao aspecto biológico do imperialismo, mas ao filosófico. Quando Rudolf Hess diz que o nazismo nada mais é que biologia aplicada, é Darwin que ele invoca, não Nietzsche. Acontece que a idéia de que todo êxito humano decorre do prevalecer de raças superiores sobre inferiores impreterivelmente o coloca no caminho do Terceiro Reich.
      Combinada com o combate ideológico à caridade cristã, tal concepção forneceu o alicerce filosófico necessário ao expansionismo nazista na Europa e à noção de superioridade que o ensejou. O Terceiro Reich só chegou onde chegou porque foi além do bem e do mal. As atrocidades dos einzatzgruppen no leste europeu nada mais são do que manifestações da vontade-de-potência que Nietzsche tinha em tão alta conta. Hitler foi nada menos que a encarnação do übermensch.
        O tipo de condescendência chauvinista que transborda da pena de Rudyard Kipling através das linhas d’O Fardo do Homem Branco ilustra o conceito francês de Missão Civilizatória, segundo o qual o imperialismo, apesar de todo o sofrimento causado aos povos subjugados, tinha, antes de tudo, a pretensão de ajudá-los. Por mais que o racismo complacente de se ver como uma cultura superior a trazer a civilização aos selvagens seja em si mesmo reprovável, nada disso se compara à tradição macabra inaugurada por Darwin e Nietzsche. Foi a partir da influência cultural de suas idéias que os piores genocidas passaram a clamar agir em prol do “progresso” e da “ciência”.
       No mundo de hoje, a abolição da sacralidade da vida humana, instituída a duras penas pela tradição cristã, e sua conseqüente equiparação à dos demais animais, levou à situação em que o extermínio de pessoas em estágio embrionário é banalizada ao mesmo tempo em que o perigo de extinção ensejou uma espécie de culto ambientalista neopagão em que as garantias, antes asseguradas à humanidade graças à influência cultural do cristianismo, simplesmente migraram para as demais espécies. Dada a lógica depravada segundo a qual os humanos são apenas mais uma espécie e que há demais deles no mundo, se materializa a previsão de Chesterton: onde há adoração animal, há também sacrifício humano.

        A ironia de tudo é que o próprio Nietzsche deveria ser exterminado segundo a própria lógica: era fraco, doente, esquizofrênico e morreu louco.


 

1 – Vincent Carrol e David Shiflett, Christianity on Trial, Encounter Books, San Francisco, 2001, pg. 142.

2 – Thomas E. Woods, Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, Quadrante, São Paulo, 2014, pg. 128.

3 – Charles Darwin, The Descent of Men, and Selection in Relation to Sex. Introdução de John Tyler Bonner e Robert M. May, Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981, Parte 1, cap 5, pg. 168.

4 – Ibid, Parte 1, cap 5, pg. 177.

5 – Ibid, Parte 1, cap 6, pg. 201.

6 – Friedrich W. Nietzsche, Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de Uma Filosofia do Futuro, Hemus, São Paulo, 2014, pg. 154.

7 – Friedrich W. Nietzsche, Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de Uma Filosofia do Futuro, Tradução Mário Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes 2009, seção 225. 


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