“(...) Pois eu estava com fome e vocês me deram de
comer; eu estava com sede e me deram de beber; eu era estrangeiro e me
receberam em sua casa; eu estava sem roupa e me vestiram; eu estava doente e
cuidaram de mim; eu estava na prisão e vocês foram me visitar. (...) Eu garanto
a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos,
foi a mim que o fizeram.”
A série Hunters,
do Amazon Prime, conta a história de um grupo de judeus caçadores de
ex-nazistas que escaparam do tribunal de Nuremberg e conseguiram se estabelecer
nos EUA da década de 1970. À medida que a trama se desenrola, o espectador é
apresentado a uma organização que busca infiltrar neonazistas na burocracia
governamental americana a fim de erigir o Quarto Reich no país.
Dentre os membros do grupo, Travis Leich se destaca por ser
uma espécie de quebra-ossos fanático, adepto de uma visão de mundo darwinista.
A certa altura, ele se depara num avião com uma mãe a impedir o filho alérgico
de comer um doce de amendoim. O discurso da personagem é revelador da essência
de todo movimento anticristão de jaez progressista: ao censurar a mãe que zela
pela saúde do filho, ele calmamente explica como ela presta um desserviço à
espécie por impedir que um membro mais fraco pereça, assim enfraquecendo-a, já
que a criança poderá transmitir seus genes no futuro e, com eles, sua alergia.
Essa visão da humanidade como espécie passível de
melhoramento genético consciente, tal qual animais de fazenda, engloba a noção de
que a saúde da linhagem é mais importante que a dignidade do indivíduo e
chama-se eugenia. A origem dessa crença jaz na rejeição radical à doutrina
cristã, segundo a qual a humanidade ocupa uma posição central na Criação, acima
dos demais animais.
O corolário da concepção cristã de humanidade é,
naturalmente, a noção de dignidade humana, inexistente na cultura ocidental até
a conversão de Constantino. A antiguidade clássica foi o tempo do império do
mais forte, em que as pessoas doentes, fracas e sem linhagem eram vistas com
desprezo. Caridade e cuidado com os mais necessitados eram vistos como
fraqueza, o que deu origem a uma lógica sacrificial para justificar o descarte
impessoal de vidas consideradas como inferiores.
Platão escreveu que um homem impossibilitado de trabalhar em
virtude de doença deve ser abandonado à morte e que a medicina deveria se
concentrar apenas naqueles que não padecessem de nenhuma deficiência. Sêneca e
Cícero pregaram o infanticídio de crianças deformadas. Como escreveu Rodney
Stark, a filosofia clássica “considerava
a piedade e a compaixão como emoções patológicas, defeitos de caráter que os
homens racionais deveriam evitar”. ¹
A Revogação da Lei da Selva
A ascensão da influência da Igreja Católica encerrou essa
cultura de morte ao impor a sacralidade da vida humana como dogma inegociável. Como
criado à imagem e semelhança de Deus, o homem faz jus a uma dignidade da qual
carecem as demais criaturas. É desse ambiente que brota, por exemplo, a
rejeição intransigente que a Santa Sé destina ao divórcio até hoje, pois na
antiguidade era um meio de impedir o homem de abandonar a família à penúria
para ir atrás de outra mulher.
Da mesma forma, é o que explica o porquê de as primeiras
denúncias contra os maus tratos infligidos contra os nativos americanos pelos
colonizadores espanhóis terem partido justamente de sacerdotes missionários do
Novo Mundo. É sintomático da influência cristã na Civilização Ocidental que,
como em raríssimas ocasiões na história, um poder imperial tenha lidado com uma
crise de consciência em virtude da forma como trata povos subjugados a seu
domínio.
Nas palavras de Thomas E. Woods, “(...) nenhum dado histórico permite supor que Átila, o rei dos hunos,
tenha tido qualquer escrúpulo moral em suas conquistas, nem que os sacrifícios
humanos coletivos que os astecas promoviam e que consideravam tão fundamentais
para a sobrevivência de sua civilização tenham provocado entre eles sentimentos
de autocrítica ou reflexões filosóficas que pudessem se comparar àqueles que os
erros de comportamento europeus provocaram entre os teólogos da Espanha do
século XVI.”²
Antonio de Montesinos,
Bartolomé de Las Casas e Pedro de Córdoba entraram para a posteridade por
denunciarem as brutalidades cometidas sob o sistema de encomienda. Inspirado em São Tomás de Aquino, Francisco de Vitória
defendeu que a dignidade a que tem direito todo ser humano deriva de sua
condição de homem, não de que seja um fiel em estado de graça. Além disso, foi
enfático em afirmar que nenhum homem deve ser privado de sua capacidade civil
ou do direito de usufruir dos próprios bens por estar em pecado mortal. Em
suma, as garantias do direito natural se estendem para além dos cristãos, a
todo ser humano.
E isso, nunca é demais lembrar, só foi possível graças à
idéia revolucionária de que a criação à imagem e semelhança de Deus confere um
status inviolável à pessoa humana. Dado o fato de que, nas demais tradições
abraâmicas isso é um privilégio reservados aos fiéis (Islamismo) ou ao povo
eleito (Judaísmo), essa é uma conquista que, dentre as grandes religiões da
história, apenas o Cristianismo pode reclamar.
O ocaso do Medievo viria a provar que tinha chegado ao fim o
interstício histórico no qual essa visão de humanidade prevaleceu entre os
intelectuais. Apesar de antiga, a cultura sacrificial anterior à era cristã
tinha mais um aspecto de tradição, um conjunto de práticas e entendimentos
cimentado pelo tempo e transmitido involuntariamente de geração a geração. Na
modernidade é que ela adquiriu o status cientificista que preparou o terreno
para a eugenia e os horrores do século XX. E foi Charles Darwin quem fincou a
pedra fundamental desse edifício.
Primeiro a Espécie, Depois o
Indivíduo
Em A Origem das
Espécies o naturalista britânico formalizou o conceito de seleção natural,
segundo o qual, dada a luta pela sobrevivência num ambiente hostil, apenas os
indivíduos melhor adaptados ao meio seriam capazes de transmitir seus genes às
gerações posteriores. Assim sendo, a própria natureza age como melhoradora da
linhagem genética das espécies ao permitir a sobrevivência apenas dos mais
aptos. Curiosamente, Darwin tomou o cuidado de não aplicá-la à humanidade em si
neste primeiro momento. Isso ele faria uma década depois, em 1871, ao publicar
o menos famoso A Descendência do Homem.
Escreve ele, tecendo admoestações à caridade típica das
sociedades ocidentais: “Entre os
selvagens, os mais fracos física ou mentalmente são logo eliminados (...). Nós,
homens civilizados, por outro lado, fazemos o máximo que podemos para reprimir
esse processo de eliminação (...). E eis que os membros mais fracos de uma
civilização propagam suas crias. Ninguém
que já tenha se dedicado à criação de animais domésticos pode duvidar que isso
é extremamente ofensivo à raça humana. (...) raramente um homem é tão
ignorante ao ponto de permitir que seus piores animais se reproduzam.”³ (...) “Se (...) várias limitações (...) não forem
capazes de prevenir que os (...) membros inferiores da sociedade cresçam em
maior escala e rapidez que a classe dos melhores homens, a nação irá regredir
(...).” (4)
Primo de Darwin, Francis Galton, entretanto, não esperaria
tanto tempo para inferir as consequências lógicas (no que diz respeito à
espécie humana) do que leu em A Origem
das Espécies, ao cunhar o termo eugenia ainda em 1865. Ao rejeitar o status
de sacralidade que a doutrina cristã reservava à vida humana, colocando a
humanidade no mesmo patamar que os demais animais, o efeito da teoria da
seleção natural foi simplesmente dar subsídios “científicos” a quem, a partir
de então, se propusesse a relativizar qualquer tipo de reprovação moral a
respeito de se tratar homens como animais.
Muito embora sempre tivesse havido escravidão negra e
indígena nas colônias européias além-mar, junto dela jazia tanto o atenuante,
por assim dizer, de que era um imperativo econômico da era pré-industrial,
quanto a mácula moral indelevelmente impressa pela influência cultural cristã.
Não à toa, foram os próprios cristãos quacres a iniciarem o movimento
abolicionista no ocidente, a primeira civilização a extinguir a escravidão e a
dar exemplo às demais, nunca é demais lembrar.
O tipo de escravidão que ressurgiu no Terceiro Reich, por
outro lado, não tinha razão econômica, e sua origem foi muito mais ideológica,
fundada na concepção darwinista de que judeus, negros e eslavos não passavam
de sub-raças das quais os arianos tinham
o dever moral de dispor da maneira que melhor lhes aprouvesse para seus
propósitos. Nesse sentido, os nazistas nada fizeram a não ser se guiar pelo que
Darwin publicou em A Descendência do
Homem: “Num período futuro (...) as raças humanas civilizadas irão (...) subjugar, exterminar e substituir, ao
redor do mundo, as raças mais selvagens.” (5).
A Moral de Aristocrata e a Moral de
Escravo
Seguindo a mesma linha, ao formular o conceito de moral de escravo, Nietzsche deu sua
parcela de contribuição no esforço de cimentar, nos meios intelectuais, a rejeição
ideológica à caridade cristã. Segundo ele, o Trono de Pedro seria um dos principais
responsáveis pelo que chamou de decadência da civilização ocidental porque, ao
institucionalizar a caridade, enfraqueceu o homem.
“A vida é
essencialmente apropriação, danificação, dominação daquilo que é alheio e mais
frágil.”(6) O filósofo alemão acreditava na dor como matéria prima de toda
grandeza. Para ele, as civilizações só progridem ao custo da eliminação dos
mais fracos e da guerra, sendo estes apenas “base
ou andaime sobre o qual um tipo escolhido de homem [o aristocrata] pode
educar-se para sua missão superior”.
Para Nietzsche o que caracteriza esse tipo é justamente a
disposição não apenas de sobreviver e coexistir, mas de dominar e subjugar os
mais fracos. Para definir esse ânimo imperial, o alemão cunhou o termo vontade de potência, pedra fundamental
de sua concepção de moral saudável, a moral
de aristocrata, diametralmente oposta à cáritas
cristã, a moral de escravo.
Diferentemente do
pragmatismo utilitário de Darwin, que via no extermínio do mais fraco um meio
de aprimoramento da saúde da espécie, a guerra de Nietzsche contra os
necessitados é ideológica, pois se assenta numa visão supremacista de mundo,
segundo a qual é dever moral dos mais fortes subjugarem os mais fracos. A ética
de Joffrey Baratheon, o mais nietzscheano dos personagens de Game of Thrones,
segundo o qual a severidade é o preço a se pagar pela grandeza. O alemão não
poderia ser mais claro: “Quase tudo
aquilo a que damos o nome de ‘alta cultura’ está baseado na espiritualização da
crueldade, no torná-la mais profunda: esse é meu veredicto.” (7)
Da Queda da Bastilha às Câmaras de
Gás
Tal a influência das ideias de Darwin e Nietzsche que o
ambiente moral nos meios intelectuais europeus do século XIX se impregnaria de
um amálgama ideológico composto pela rejeição à caridade cristã e pela
concepção darwinista de que o progresso humano depende da eliminação dos considerados
inferiores.
Essa é justamente a matéria-prima de uma série de idéias
perniciosas que se tornaram a marca registrada do ambiente de vale-tudo
cientificista que se tornou o debate público da era vitoriana: do darwinismo
social de Herbert Spencer, passando pela frenologia de Franz Joseph Gall e a
antropologia criminal de Cesare Lombroso, culminando no racismo científico de Joseph
de Gobineau. Todas elas saíram da caixa de pandora aberta, intencionalmente ou
não, por Darwin e Nietzsche.
Trazendo a humanidade para o mesmo plano moral das demais
espécies e instituindo o desprezo ideológico pelos mais fracos, esse lodaçal retórico
removeu todo tipo de escrúpulo da atuação dos imperialistas europeus na África
e na Ásia. Em paralelo, a perda de influência cultural da Igreja impossibilitou
o mesmo exame de consciência que acometeu os colonizadores espanhóis durante a
colonização ameríndia. Diante desse cenário, o massacre dos hereros na Namíbia
alemã, os campos de concentração ingleses durante a Guerra dos Bôeres e as amputações
em massa no Congo belga, dentre tantas atrocidades que prenunciariam o que estava
por vir no século seguinte, não passariam de consequência lógica.
Da união macabra entre
a técnica e a rejeição da noção cristã de sacralidade da vida humana nasceu o
caráter industrial, inexistente em outras épocas da história, das crueldades
que foram as marcas do século XX. Na verdade, isso nada mais é do que um efeito
inescapável do mesmo racionalismo que inspirou a criação das guilhotinas como
método eficiente e “científico” de matar pessoas durante o terror jacobino. As
câmaras de gás nasceram na queda da Bastilha.
Prelúdio de uma Filosofia do Futuro
É simbólico que o subtítulo de Além do Bem e do Mal seja Prelúdio
de uma Filosofia do Futuro, haja a vista a previsão que o próprio filósofo
fez do mal que suas as idéias iriam causar ao mundo. Por mais que seus
defensores na academia possam pinçar declarações filsossemitas ou
antigermânicas em seu trabalho, é inegável a influência que a visão de mundo
imperial de Nietzsche exerceu não só nos nazistas, mas nos movimentos
imperialistas da primeira metade do século XX.
Por óbvio que não se pode atribuir o caráter racial da
doutrina nazista ao alemão, uma vez que ele se dedicou não ao aspecto biológico
do imperialismo, mas ao filosófico. Quando Rudolf Hess diz que o nazismo nada
mais é que biologia aplicada, é Darwin que ele invoca, não Nietzsche. Acontece
que a idéia de que todo êxito humano decorre do prevalecer de raças superiores sobre
inferiores impreterivelmente o coloca no caminho do Terceiro Reich.
Combinada com o combate ideológico à caridade cristã, tal
concepção forneceu o alicerce filosófico necessário ao expansionismo nazista na
Europa e à noção de superioridade que o ensejou. O Terceiro Reich só chegou
onde chegou porque foi além do bem e do mal. As atrocidades dos einzatzgruppen no leste europeu nada
mais são do que manifestações da vontade-de-potência que Nietzsche tinha em tão
alta conta. Hitler foi nada menos que a encarnação do übermensch.
O tipo de condescendência chauvinista que transborda da pena
de Rudyard Kipling através das linhas d’O
Fardo do Homem Branco ilustra o conceito francês de Missão Civilizatória, segundo o qual o imperialismo, apesar de todo
o sofrimento causado aos povos subjugados, tinha, antes de tudo, a pretensão de
ajudá-los. Por mais que o racismo complacente de se ver como uma cultura
superior a trazer a civilização aos selvagens seja em si mesmo reprovável, nada
disso se compara à tradição macabra inaugurada por Darwin e Nietzsche. Foi a
partir da influência cultural de suas idéias que os piores genocidas passaram a
clamar agir em prol do “progresso” e da “ciência”.
No mundo de hoje, a abolição da sacralidade da vida humana,
instituída a duras penas pela tradição cristã, e sua conseqüente equiparação à
dos demais animais, levou à situação em que o extermínio de pessoas em estágio
embrionário é banalizada ao mesmo tempo em que o perigo de extinção ensejou uma
espécie de culto ambientalista neopagão em que as garantias, antes asseguradas
à humanidade graças à influência cultural do cristianismo, simplesmente migraram
para as demais espécies. Dada a lógica depravada segundo a qual os humanos são
apenas mais uma espécie e que há demais deles no mundo, se materializa a
previsão de Chesterton: onde há adoração animal, há também sacrifício humano.
A ironia de tudo é que o próprio Nietzsche deveria ser
exterminado segundo a própria lógica: era fraco, doente, esquizofrênico e
morreu louco.
1 – Vincent
Carrol e David Shiflett, Christianity on
Trial, Encounter Books, San Francisco, 2001, pg. 142.
2 – Thomas
E. Woods, Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, Quadrante,
São Paulo, 2014, pg. 128.
3 – Charles
Darwin, The Descent of Men, and Selection
in Relation to Sex. Introdução de John Tyler Bonner e Robert M. May,
Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981, Parte 1, cap 5, pg. 168.
4 – Ibid, Parte 1, cap 5, pg. 177.
5 – Ibid, Parte 1, cap 6, pg. 201.
6 –
Friedrich W. Nietzsche, Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de Uma Filosofia do
Futuro, Hemus, São Paulo, 2014, pg. 154.
7 –
Friedrich W. Nietzsche, Além do Bem e do
Mal ou Prelúdio de Uma Filosofia do Futuro, Tradução Mário Ferreira dos
Santos. Petrópolis, RJ: Vozes 2009, seção 225.
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