No mais recente episódio de Vice,
aclamada série jornalística da HBO, é apresentado um negócio pouco conhecido,
que vem crescendo de forma avassaladora na Índia: a gravidez terceirizada. A
atividade consiste basicamente no aluguel do útero de uma mulher para gerar uma
criança a partir do material genético de pessoas que contratam o serviço.
Devido ao adiamento da gravidez por motivos profissionais, o
aumento da adoção por parceiros gays, e, principalmente, o menor custo em
relação ao mesmo serviço prestado em seus países de origem, cada vez mais
pessoas têm procurado clínicas indianas.
O capítulo se inicia com a visita de uma
correspondente do semanário a um desses estabelecimentos.
À primeira vista, a jornalista se impressiona com o ritmo quase industrial da
ocorrência de partos cesarianos na unidade. É possível perceber em suas
intervenções certo teor crítico com o fato de a clínica optar por esse tipo de
procedimento (já que especialistas em obstetrícia recomendam o parto cesariano
apenas em condições especiais) e com a forma sistemática como, diante de tanto a
fazer, os funcionários do hospital realizam seu trabalho. Quem já frequentou qualquer
unidade hospitalar, sabe que o caráter metódico da atividade lá
executada só pode causar estranheza a quem não tem a mínima idéia da dinâmica de um
local como aquele. Chega a ser ridícula a forma como ela tenta induzir o espectador
a partilhar de sua ingenuidade.
Após entrevistar a proprietária da clínica, a
repórter é informada sobre como o serviço representa uma possibilidade de fuga
da penúria extrema para as indianas pobres. Num país onde 360 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza e onde 22,5% da população não é minimamente alfabetizada,
são parcas as chances de uma mulher pobre e analfabeta não ter que se submeter
a regimes de semi-escravidão ou trabalhos degradantes para sobreviver. Como se isso não bastasse para justificar a importância de uma
iniciativa que ajuda a amenizar a miséria num país onde quase 50% da população não dispõe sequer da mínima infraestrutura de saneamento básico,
a intrépida jornalista observa agora os fatos sob a ótica das mulheres que se
submetem ao procedimento. Ao mesmo tempo em que algumas, aos prantos, confessam
se sentir constrangidas, elas vislumbram a possibilidade única de ganhar o
suficiente para deixar de viver no neolítico, sem precisar vender as filhas pra isso.
Ostentando a vaidade típica de quem se pretende
farol da humanidade, a incansável defensora dos
fracos e oprimidos se impele agora na direção de sua semelhante local, uma ativista
dos direitos das mulheres (é
possível perceber uma foto sua com Hillary Clinton). Chega a ser
surreal ver alguém que diz “defender as mulheres” viver de procurar meios de dificultar uma atividade empreendedora que representa, pelo menos para os padrões indianos, uma forma voluntária, não coerciva, não violenta e não degradante de
elas garantirem um mínimo de dignidade. Se isso já atinge as raias da fantasia num
país pobre qualquer, chega a ser patético numa sociedade onde, frequentemente,
semi-escravidão não é questão de escolha, mas de necessidade. É como se as
mulheres indianas já não tivessem problemas o suficiente: uma ativista se diz
preocupada com elas enquanto trabalha para reduzir os meios de elas
abandonarem a mendicância. E isso num país onde uma mulher é estuprada a cada 21 minutos. É como diz o ditado, socialista gosta
tanto dos pobres que vive para multiplicá-los e os manter na escassez.
A Índia é uma sociedade bárbara, onde a miséria,
mais que ignorada, já foi inclusive institucionalizada.
Um país que tem a cultura de tratar a população pobre como humanidade excedente. Mesmo assim, há zelotes que, ao vislumbrarem visionários,
verdadeiros Midas contemporâneos que geram riqueza onde antes só havia penúria
e desespero, preferem manter o antolho ideológico, só porque a
realidade não corrobora com seu fanatismo. No caso da redação de Vice, isso ainda é compreensível. Seguros,
bem alimentados e confortáveis em suas prósperas sociedades, é mais fácil se
entregar a contos de fada políticos do que se colocar no lugar de quem passa
fome a meio mundo de distância. Vinda de gente que, por outro lado, acompanha em tempo real o drama de quem precisa se desumanizar pra conseguir
comer, essa atitude só é compreensível no campo da maldade pura e simples. Gente que vive de explorar a miséria alheia para se promover.
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