terça-feira, 11 de agosto de 2020

Por que Marxismo Cultural?


Nem o mais intransigente crítico do marxismo pode negar sua capacidade de propaganda e sua resiliência no debate público. Mesmo depois de tudo que as “deturpações das idéias de Marx” causaram ao mundo no século XX, a concepção de socialismo no senso comum ainda é, em boa medida, associada a uma imagem de preocupação com os pobres, justiça social e fraternidade. Por bem menos o nacional-socialismo foi (com toda a razão, sempre é bom lembrar) condenado ao ostracismo e lançado com violência para fora do escopo do que se considera aceitável na opinião pública. Provavelmente é por isso que não é difícil encontrar quem associe o capitalismo a tudo que há de ruim e, principalmente, veja no marxismo algo cuja raison d’etre seja destruí-lo. Não que isso não esteja em seu plano de ação. A questão é que uma análise mais atenta da teoria marxista revela que seu objetivo principal é outro.
A chave de explicação da realidade do marxismo clássico é a economia. A teoria marxista entende que o que determina o ambiente cultural (o que Marx chamava de superestrutura) de uma determinada sociedade são as formas como ela produz riqueza (a infraestrutura). Uma economia capitalista se caracteriza pela posse privada dos equipamentos e meios através dos quais essa produção acontece (o que Marx denomina capital). Assim sendo, se o controle dos chamados meios de produção passa das mãos dos capitalistas (os detentores da estrutura necessária para a produção) para as mãos dos que os operam (os proletários, por meio do estado), seriam atingidos tanto o objetivo econômico de otimizar e distribuir com eficiência a produção, quanto o sociológico de mitigar as desigualdades sociais. O que geralmente passa despercebido é o efeito colateral disso: a mudança na infraestrutura da sociedade ensejaria uma nova superestrutura. A partir daí surgiriam uma nova cultura, uma nova moral, novas leis, novos costumes, novas concepções de arte, até a forma de agir e pensar das pessoas se modificaria. Enfim, surgiria uma nova civilização.
A título de exemplo, o que caracteriza o modo de produção anterior ao capitalismo, o feudalismo, é uma economia de caráter rural, na qual o comércio praticamente inexiste e a terra e os equipamentos de trabalho são de posse exclusiva do senhor feudal, cabendo à outra classe social, os servos, apenas o papel de empregar sua força de trabalho em troca de uma parte de produção. Para Marx, toda a cultura medieval deriva apenas disso e, se a sociedade ocidental mudou radicalmente com o advento da Revolução Industrial, isso se deveu, grosso modo, apenas ao fato de a produção deixar de ser manual e rural para se tornar industrial e urbana. Superando-se o capitalismo, que ele via como uma etapa necessária e anterior ao advento do comunismo, o novo modo de produção ensejaria uma nova sociedade, uma nova civilização, portanto.
É por isso que o objetivo principal da práxis marxista não é a destruição do capitalismo em si. Essa é a estratégia. Seu propósito real é substituir a Civilização Ocidental por outro modelo de sociedade. A retórica do marxismo clássico é eminentemente econômica: ao mudar a base econômica da sociedade, a própria sociedade muda. Em outras palavras, é possível operar uma mudança civilizacional a partir da mudança da forma como a riqueza é criada e distribuída.
Desde 1789 pelo menos, a principal forma por meio da qual se tentou fazer isso foi a violência física elementar. Dos pré-marxistas jacobinos destruindo igrejas e bradando querer enforcar padres nas tripas de aristocratas, aos bolcheviques russos, maoístas chineses e cambojanos do Khmer Rouge, a estratégia da ação direta não se provou muito efetiva, pois, fora do círculo do politburo, as pessoas comuns tendem a não ter muito estômago para atrocidades. Além disso, o controle burocrático dos meios de produção não se mostrou economicamente eficiente. A repressão estatal sistemática e rejeição ideológica ao capitalismo não se mostraram um substituto viável ao ocidente calcado na ética protestante e no espírito do capitalismo.
O advento da Primeira Guerra Mundial serviu para lançar a pá de cal sobre as pretensões de transformação civilizacional do marxismo clássico. O próprio Marx já tinha previsto a revolução uma dezena de vezes e morreu sem ver seu ideal tomar forma. Seus seguidores viram no assassinato do arquiduque a possibilidade real de unir os proletários do mundo para jogá-los contra seus algozes. Ocorre que, contra todas as probabilidades, os trabalhadores preferiram se engajar sob suas bandeiras nacionais a lutar sob a égide do internacionalismo socialista.
Isso ensejou um exame de consciência profundo nos adeptos do marxismo. A realidade passou como um trator por cima da ideologia. Justo na hora de o proletariado se unir sob a bandeira do socialismo para depor quem lhe oprimia, tomar a posse dos meios de produção e assumir o protagonismo histórico, os trabalhadores resolveram se voltar a suas bandeiras nacionais, suas famílias e a sua religião.
E, a partir de agora, seriam exatamente esses os fronts de batalha, não mais a querela acerca do controle dos meios de produzir riqueza.
Dois intelectuais, trabalhando independentemente um do outro, foram os primeiros a atentar para isso. Antonio Gramsci entendeu como a influência de instituições como a Igreja Católica, o estado-nação e a família nuclear patriarcal formavam uma espécie de redoma cultural que impedia os trabalhadores de acessar a própria consciência de classe. A solução para isso seria a criação de uma nova hegemonia cultural, capitaneada por intelectuais comprometidos com a causa de remodelar a sociedade desde cima, de modo a, assim, dar início a uma transformação cujo principal objetivo é por abaixo a Civilização Ocidental.
O húngaro György Lukács, por sua vez, detectou no direito romano, na moral judaico-cristã e no racionalismo grego o tripé sobre o qual se assenta o poder do Ocidente, de modo que, revolução nenhuma lograria êxito sem o ataque sistemático nessas bases. Acima de tudo, tanto ele quanto Gramsci perceberam como a capacidade do capitalismo em produzir em profusão tinham tornado o proletariado conservador. Mitigadas suas necessidades materiais e melhoradas suas condições de existência material, o fervor revolucionário se esvai e, com ele, o principal ativo político do marxismo clássico.
Para efeito de análise, vale atentar para o impacto que uma das principais inovações ao processo produtivo trazidas pela Revolução Industrial, as economias de escala, causaram no acesso das pessoas comuns a bens de consumo. Quando se fabrica algo em volume muito elevado (o objetivo da produção em escala industrial), o resultado é que o custo de confecção de cada unidade tende a diminuir com o aumento da quantidade produzida. Em outras palavras, o incremento progressivo da produção diminui o custo de fabricação de cada item individual (e, logo, seu preço final). A consequência lógica é que o produto se torna tão barato que todos, ricos ou pobres, podem ter acesso a ele, algo inimaginável numa economia como a feudal, na qual a produção era artesanal (logo, muito mais custosa), e, por isso, apenas ricos tinham acesso a bens de consumo.
Diante disso, todo o argumento do marxismo clássico, segundo o qual a tendência do capitalismo era a pauperização progressiva do proletariado, chegando a um ponto em que os trabalhadores não teriam escolha senão pegar em armas para não morrer de fome, vai pelo ralo. Mesmo que, em virtude da oferta abundante de mão-de-obra, o nível dos salários permanecesse baixo, os preços da produção também o seriam, e pelo mesmo motivo. O proletariado se converte, então, em mercado consumidor de sua própria produção, barateada pela oferta abundante, completando-se, assim, o ciclo de produção e distribuição de riqueza. A própria essência da economia de mercado, portanto, depende de os trabalhadores terem acesso a uma parte da produção. O gênio de Lukács e Gramsci foi entender isso em primeiro lugar e, principalmente, concluir que, sem atacar o problema nas bases adequadas (a cultura, não mais a economia) não haveria mudança civilizacional. A prova disso foi a forma como os trabalhadores tinham pegado em armas na Primeira Guerra, não pela causa do proletariado internacional, mas pelas próprias cores nacionais.
Foi então que a guerra de classes migrou da arena econômica para a cultural. Dando continuidade ao trabalho de Gramsci e Lukács, os teóricos da escola de Frankfurt inovaram por fundar a Teoria Crítica e balcanizar a sociedade, pulverizando a luta de classes. Se, na perspectiva clássica, os proletários antagonizavam com burgueses, a partir de agora tem-se, de um lado, opressores e, de outro, oprimidos: negros contra brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais, enfim, qualquer grupo social implicante contra a maioria silenciosa.
Ainda nessa linha, Herbert Marcuse levou o esforço de seus ancestrais ideológicos ao estado da arte. Em sua obra Eros e Civilização, fundiu Marx a Freud e propôs como solução à “violência intrínseca” à sociedade americana o sexo livre. Foi a partir de seu pensamento que a sexualização da cultura pop tomou forma. O advento do movimento hippie, com seu lema make love, not war, cunhado pelo próprio Marcuse, associou a oposição à Guerra do Vietnã à liberdade sexual, conferindo, assim, um caráter terapêutico ao sexo descontrolado: se a sociedade conservadora americana é a favor do conflito, não é por se opor ao imperialismo comunista na Ásia, mas por não transar o suficiente.
O Homem Unidimensional, outra obra sua de influência inquestionável, ajudou a definir o rumo da sociedade atual ao conferir protagonismo a um grupo social originalmente desprezado pelo marxismo clássico: o lumpemproletariado, definido por Marx como o proletariado desprovido de consciência de classe, formado pelas pessoas que, por viverem à margem da sociedade, não possuem importância econômica, passou da sarjeta aos holofotes. Por se tratar de pessoas por definição insatisfeitas com o status quo, passaram a ser promovidas em razão de sua utilidade política, devido à sua vocação natural para a subversão e desestabilização social. A forma como o estilo de vida de bandidos, drogados, doentes, loucos, travestis, prostitutas e desajustados em geral tem sido promovido pelos meios de comunicação de massa tem origem no pensamento de Marcuse.
Apesar das divergências na estratégia, a dinâmica, tanto dos marxistas clássicos quanto dos pós-marxistas posteriores a 1918, é a mesma: estimular o conflito perpétuo entre diferentes grupos sociais com o objetivo de desestabilizar a sociedade. Se antes o campo de batalha era econômico, agora é cultural. Como o objetivo continua o mesmo, destituir a Civilização Judaico-Cristã, o marxismo, aqui entendido como ideologia de mudança civilizacional, muda seu caráter de econômico para cultural. Daí o termo marxismo cultural.
Quando condenava a religião como ópio do povo, o próprio Marx já mostrava entender como a cultura ocidental era um empecilho a seu projeto de reforma civilizacional. Ocorre que, no seu ponto de vista, fortemente marcado pelo cientificismo, mecanicismo e materialismo de uma época em que o darwinismo e o positivismo estavam em voga, as relações materiais de produção pareceram mais efetivas para descrever as ações humanas do que a cultura.
A partir de Gramsci e Lukács, a economia seria colocada de lado. Mises provou a impossibilidade teórica da economia planificada ainda no início da década de 1920 e os social-democratas entenderam que, da mesma forma que abolir a economia de mercado não poderia mais ser uma opção, havia meios mais eficazes que a revolução violenta para desestabilizar o Ocidente cristão. Assim sendo, o ataque, que antes era sobre os detentores dos meios de produção, se voltou sobre o que o caracteriza: sua religião, suas tradições, sua sensibilidade estética, sua moral, suas artes, em suma, sua cultura.
É a partir daí que se desenrola o cenário que agora se apresenta. A onipresença das chamadas pautas identitárias na mídia de massa, o avanço, nos ambientes eclesiásticos, das formas de interpretação dos evangelhos à luz do materialismo histórico-dialético, o combate ao tabu sobre o uso de drogas, o ataque sistemático às sensibilidades cristãs na cultura pop, a promoção do suposto poder terapêutico do sexo livre, o louvor diuturno do homossexualismo e do transgenerismo, entre outras tantas formas que os inimigos da Civilização Ocidental têm encontrado para pô-la abaixo, todas são facetas do marxismo cultural e a prova não só de como ele é algo muito influente no mundo ocidental, mas de como é a principal força de desestabilização civilizacional já concebida.
A estratégia do marxismo clássico, ao eleger no capitalismo seu alvo principal, se provou completamente equivocada, como bem mostrou o século XX. A ação dos movimentos anticristãos e antiocidentais da atualidade passa, necessariamente, por entender que o modelo econômico liberal não é algo que possa ser superado. Não à toa são exatamente os maiores bilionários, que auferiram fortuna em virtude do ambiente de liberdade comercial que apenas algo como uma economia de mercado poderia proporcionar, os primeiros a abraçar o marxismo cultural como estratégia para manter seus monopólios e reformar a sociedade segundo suas vontades. Ninguém que se interesse pelo rumo que a Civilização Judaico-Cristã venha a tomar nos próximos tempos, seja seu amigo ou inimigo, pode ignorar isso.

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