Nem o mais intransigente crítico
do marxismo pode negar sua capacidade de propaganda e sua resiliência no debate
público. Mesmo depois de tudo que as “deturpações das idéias de Marx” causaram
ao mundo no século XX, a concepção de socialismo no senso comum ainda é, em boa
medida, associada a uma imagem de preocupação com os pobres, justiça social e fraternidade. Por bem menos o nacional-socialismo foi (com toda a razão, sempre
é bom lembrar) condenado ao ostracismo e lançado com violência para fora do
escopo do que se considera aceitável na opinião pública. Provavelmente é por
isso que não é difícil encontrar quem associe o capitalismo a tudo que há de ruim e, principalmente, veja no marxismo algo cuja raison d’etre seja destruí-lo. Não que isso não esteja em seu plano
de ação. A questão é que uma análise mais atenta da teoria marxista revela que
seu objetivo principal é outro.
A chave de explicação da
realidade do marxismo clássico é a economia. A teoria marxista entende que o que
determina o ambiente cultural (o que Marx chamava de superestrutura) de uma
determinada sociedade são as formas como ela produz riqueza (a infraestrutura).
Uma economia capitalista se caracteriza pela posse privada dos equipamentos e
meios através dos quais essa produção acontece (o que Marx denomina capital).
Assim sendo, se o controle dos chamados meios de produção passa das mãos dos
capitalistas (os detentores da estrutura necessária para a produção) para as
mãos dos que os operam (os proletários, por meio do estado), seriam atingidos
tanto o objetivo econômico de otimizar e distribuir com eficiência a produção, quanto
o sociológico de mitigar as desigualdades sociais. O que geralmente passa
despercebido é o efeito colateral disso: a mudança na infraestrutura da
sociedade ensejaria uma nova superestrutura. A partir daí surgiriam uma nova
cultura, uma nova moral, novas leis, novos costumes, novas concepções de arte, até
a forma de agir e pensar das pessoas se modificaria. Enfim, surgiria uma nova
civilização.
A título de exemplo, o que
caracteriza o modo de produção anterior ao capitalismo, o feudalismo, é uma economia
de caráter rural, na qual o comércio praticamente inexiste e a terra e os
equipamentos de trabalho são de posse exclusiva do senhor feudal, cabendo à
outra classe social, os servos, apenas o papel de empregar sua força de
trabalho em troca de uma parte de produção. Para Marx, toda a cultura medieval
deriva apenas disso e, se a sociedade ocidental mudou radicalmente com o advento
da Revolução Industrial, isso se deveu, grosso modo, apenas ao fato de a
produção deixar de ser manual e rural para se tornar industrial e urbana.
Superando-se o capitalismo, que ele via como uma etapa necessária e anterior ao
advento do comunismo, o novo modo de produção ensejaria uma nova sociedade, uma
nova civilização, portanto.
É por isso que o objetivo
principal da práxis marxista não é a destruição do capitalismo em si. Essa é a
estratégia. Seu propósito real é substituir a Civilização Ocidental por outro
modelo de sociedade. A retórica do marxismo clássico é eminentemente econômica:
ao mudar a base econômica da sociedade, a própria sociedade muda. Em outras
palavras, é possível operar uma mudança civilizacional a partir da mudança da
forma como a riqueza é criada e distribuída.
Desde 1789 pelo menos, a
principal forma por meio da qual se tentou fazer isso foi a violência física
elementar. Dos pré-marxistas jacobinos destruindo igrejas e bradando querer
enforcar padres nas tripas de aristocratas, aos bolcheviques russos, maoístas
chineses e cambojanos do Khmer Rouge,
a estratégia da ação direta não se provou muito efetiva, pois, fora do círculo
do politburo, as pessoas comuns tendem a não ter muito estômago para
atrocidades. Além disso, o controle burocrático dos meios de produção não se
mostrou economicamente eficiente. A repressão estatal sistemática e rejeição
ideológica ao capitalismo não se mostraram um substituto viável ao ocidente
calcado na ética protestante e no espírito do capitalismo.
O advento da Primeira Guerra
Mundial serviu para lançar a pá de cal sobre as pretensões de transformação
civilizacional do marxismo clássico. O próprio Marx já tinha previsto a
revolução uma dezena de vezes e morreu sem ver seu ideal tomar forma. Seus seguidores
viram no assassinato do arquiduque a possibilidade real de unir os proletários
do mundo para jogá-los contra seus algozes. Ocorre que, contra todas as
probabilidades, os trabalhadores preferiram se engajar sob suas bandeiras
nacionais a lutar sob a égide do internacionalismo socialista.
Isso ensejou um exame de
consciência profundo nos adeptos do marxismo. A realidade passou como um trator
por cima da ideologia. Justo na hora de o proletariado se unir sob a bandeira
do socialismo para depor quem lhe oprimia, tomar a posse dos meios de produção
e assumir o protagonismo histórico, os trabalhadores resolveram se voltar a
suas bandeiras nacionais, suas famílias e a sua religião.
E, a partir de agora, seriam
exatamente esses os fronts de
batalha, não mais a querela acerca do controle dos meios de produzir riqueza.
Dois intelectuais, trabalhando
independentemente um do outro, foram os primeiros a atentar para isso. Antonio
Gramsci entendeu como a influência de instituições como a Igreja Católica, o
estado-nação e a família nuclear patriarcal formavam uma espécie de redoma cultural
que impedia os trabalhadores de acessar a própria consciência de classe. A
solução para isso seria a criação de uma nova hegemonia cultural, capitaneada
por intelectuais comprometidos com a causa de remodelar a sociedade desde cima,
de modo a, assim, dar início a uma transformação cujo principal objetivo é por
abaixo a Civilização Ocidental.
O húngaro György Lukács, por sua
vez, detectou no direito romano, na moral judaico-cristã e no racionalismo
grego o tripé sobre o qual se assenta o poder do Ocidente, de modo que,
revolução nenhuma lograria êxito sem o ataque sistemático nessas bases. Acima
de tudo, tanto ele quanto Gramsci perceberam como a capacidade do capitalismo
em produzir em profusão tinham tornado o proletariado conservador. Mitigadas
suas necessidades materiais e melhoradas suas condições de existência material,
o fervor revolucionário se esvai e, com ele, o principal ativo político do
marxismo clássico.
Para efeito de análise, vale atentar
para o impacto que uma das principais inovações ao processo produtivo trazidas
pela Revolução Industrial, as economias de escala, causaram no acesso das
pessoas comuns a bens de consumo. Quando se fabrica algo em volume muito
elevado (o objetivo da produção em escala industrial), o resultado é que o custo
de confecção de cada unidade tende a diminuir com o aumento da quantidade
produzida. Em outras palavras, o incremento progressivo da produção diminui o
custo de fabricação de cada item individual (e, logo, seu preço final). A
consequência lógica é que o produto se torna tão barato que todos, ricos ou
pobres, podem ter acesso a ele, algo inimaginável numa economia como a feudal, na
qual a produção era artesanal (logo, muito mais custosa), e, por isso, apenas
ricos tinham acesso a bens de consumo.
Diante disso, todo o argumento do
marxismo clássico, segundo o qual a tendência do capitalismo era a pauperização
progressiva do proletariado, chegando a um ponto em que os trabalhadores não
teriam escolha senão pegar em armas para não morrer de fome, vai pelo ralo. Mesmo
que, em virtude da oferta abundante de mão-de-obra, o nível dos salários
permanecesse baixo, os preços da produção também o seriam, e pelo mesmo motivo.
O proletariado se converte, então, em mercado consumidor de sua própria
produção, barateada pela oferta abundante, completando-se, assim, o ciclo de
produção e distribuição de riqueza. A própria essência da economia de mercado,
portanto, depende de os trabalhadores terem acesso a uma parte da produção. O
gênio de Lukács e Gramsci foi entender isso em primeiro lugar e,
principalmente, concluir que, sem atacar o problema nas bases adequadas (a
cultura, não mais a economia) não haveria mudança civilizacional. A prova disso
foi a forma como os trabalhadores tinham pegado em armas na Primeira Guerra, não
pela causa do proletariado internacional, mas pelas próprias cores nacionais.
Foi então que a guerra de classes
migrou da arena econômica para a cultural. Dando continuidade ao trabalho de
Gramsci e Lukács, os teóricos da escola de Frankfurt inovaram por fundar a
Teoria Crítica e balcanizar a sociedade, pulverizando a luta de classes. Se, na
perspectiva clássica, os proletários antagonizavam com burgueses, a partir de
agora tem-se, de um lado, opressores e, de outro, oprimidos: negros contra
brancos, mulheres contra homens, homossexuais contra heterossexuais, enfim,
qualquer grupo social implicante contra a maioria silenciosa.
Ainda nessa linha, Herbert
Marcuse levou o esforço de seus ancestrais ideológicos ao estado da arte. Em sua
obra Eros e Civilização, fundiu Marx a
Freud e propôs como solução à “violência intrínseca” à sociedade americana o
sexo livre. Foi a partir de seu pensamento que a sexualização da cultura pop
tomou forma. O advento do movimento hippie,
com seu lema make love, not war, cunhado
pelo próprio Marcuse, associou a oposição à Guerra do Vietnã à liberdade
sexual, conferindo, assim, um caráter terapêutico ao sexo descontrolado: se a
sociedade conservadora americana é a favor do conflito, não é por se opor ao imperialismo
comunista na Ásia, mas por não transar o suficiente.
O
Homem Unidimensional, outra
obra sua de influência inquestionável, ajudou a definir o rumo da sociedade atual
ao conferir protagonismo a um grupo social originalmente desprezado pelo
marxismo clássico: o lumpemproletariado, definido por Marx como o proletariado
desprovido de consciência de classe, formado pelas pessoas que, por viverem à
margem da sociedade, não possuem importância econômica, passou da sarjeta aos
holofotes. Por se tratar de pessoas por definição insatisfeitas com o status quo, passaram a ser promovidas em
razão de sua utilidade política, devido à sua vocação natural para a subversão
e desestabilização social. A forma como o estilo de vida de bandidos, drogados,
doentes, loucos, travestis, prostitutas e desajustados em geral tem sido
promovido pelos meios de comunicação de massa tem origem no pensamento de
Marcuse.
Apesar das divergências na
estratégia, a dinâmica, tanto dos marxistas clássicos quanto dos pós-marxistas posteriores
a 1918, é a mesma: estimular o conflito perpétuo entre diferentes grupos
sociais com o objetivo de desestabilizar a sociedade. Se antes o campo de
batalha era econômico, agora é cultural. Como o objetivo continua o mesmo, destituir
a Civilização Judaico-Cristã, o marxismo, aqui entendido como ideologia de
mudança civilizacional, muda seu caráter de econômico para cultural. Daí o
termo marxismo cultural.
Quando condenava a religião como
ópio do povo, o próprio Marx já mostrava entender como a cultura ocidental era
um empecilho a seu projeto de reforma civilizacional. Ocorre que, no seu ponto
de vista, fortemente marcado pelo cientificismo, mecanicismo e materialismo de
uma época em que o darwinismo e o positivismo estavam em voga, as relações
materiais de produção pareceram mais efetivas para descrever as ações humanas
do que a cultura.
A partir de Gramsci e Lukács, a
economia seria colocada de lado. Mises provou a impossibilidade teórica da
economia planificada ainda no início da década de 1920 e os social-democratas
entenderam que, da mesma forma que abolir a economia de mercado não poderia
mais ser uma opção, havia meios mais eficazes que a revolução violenta para desestabilizar
o Ocidente cristão. Assim sendo, o ataque, que antes era sobre os detentores
dos meios de produção, se voltou sobre o que o caracteriza: sua religião, suas
tradições, sua sensibilidade estética, sua moral, suas artes, em suma, sua
cultura.
É a partir daí que se desenrola o
cenário que agora se apresenta. A onipresença das chamadas pautas identitárias
na mídia de massa, o avanço, nos ambientes eclesiásticos, das formas de
interpretação dos evangelhos à luz do materialismo histórico-dialético, o
combate ao tabu sobre o uso de drogas, o ataque sistemático às sensibilidades
cristãs na cultura pop, a promoção do suposto poder terapêutico do sexo livre, o
louvor diuturno do homossexualismo e do transgenerismo, entre outras tantas
formas que os inimigos da Civilização Ocidental têm encontrado para pô-la
abaixo, todas são facetas do marxismo cultural e a prova não só de como ele é
algo muito influente no mundo ocidental, mas de como é a principal força de
desestabilização civilizacional já concebida.
A estratégia do marxismo
clássico, ao eleger no capitalismo seu alvo principal, se provou completamente
equivocada, como bem mostrou o século XX. A ação dos movimentos anticristãos e
antiocidentais da atualidade passa, necessariamente, por entender que o modelo
econômico liberal não é algo que possa ser superado. Não à toa são exatamente
os maiores bilionários, que auferiram fortuna em virtude do ambiente de liberdade
comercial que apenas algo como uma economia de mercado poderia proporcionar, os
primeiros a abraçar o marxismo cultural como estratégia para manter seus
monopólios e reformar a sociedade segundo suas vontades. Ninguém que se
interesse pelo rumo que a Civilização Judaico-Cristã venha a tomar nos próximos
tempos, seja seu amigo ou inimigo, pode ignorar isso.
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