Desde que, na virada dos anos 1990, a TV se tornou meio de comunicação de massa, os desenhos animados se tornaram praticamente a primeira experiência estética de uma criança comum nas sociedades ocidentais. É a partir deles que sua sensibilidade artística, e, por extensão, sua visão de mundo, começa a ser moldada. A forma como um ser humano apreende o belo e sua capacidade de distingui-lo do feio diz muito sobre sua capacidade de distinguir também o bom e o justo.
O fenômeno dos desenhos (animados ou não) destinados ao público infantil remete ao período entreguerras. A partir da década de 1940, algo inicialmente idealizado para entreter crianças passou basicamente a ter o objetivo de vender os valores americanos e combater a imagem do inimigo, numa espécie de guerra cultural dentro do próprio conflito bélico. Remetem a essa época, por exemplo, o Super-Homem e o Capitão América, pintados com as cores da bandeira americana com o objetivo explícito de estimular sentimentos patrióticos na audiência. Este último, em particular, combate o nazista Caveira Vermelha e seu uniforme é a própria bandeira americana, o que dota o personagem de um simbolismo perspicaz: sua arma é o escudo, passando a ideia que a América só ataca para se defender. Até o próprio pato Donald, sem conotação heroica nenhuma, deu as caras para sacanear o Terceiro Reich. Numa animação muito famosa, ele aparece mostrando as maravilhas do regime nazista.
Por falar em personagens de Walt
Disney, ninguém representa melhor a forma como os desenhos animados são usados
para promover concepções de mundo. Anticomunista convicto, Disney utilizou seu
império para ajudar a reafirmar os valores ocidentais que a sociedade da época,
imprensada entre o colosso soviético e o monstro nazista, não tinha opção a não
ser se apegar. Era uma questão de sobrevivência. A observação atenta das produções
Disney no pós-guerra mostra como a promoção da sensibilidade estética clássica,
ancorada em rígidos padrões de beleza e longe de qualquer forma de relativismo
estético, era a norma da companhia. Isso moldou o imaginário cultural daquela
geração, resultando numa sociedade mais estável e coesa.
Obras como A Bela e a Fera, Branca de
Neve e os Sete Anões, Pinóquio e Cinderela,
exaltam o Belo, e, por extensão, o Bom e o Justo, traçando em seus enredos uma
fronteira moral muito clara: nas histórias existe o bem e existe o mal, e ambos
são facilmente discerníveis um do outro. O bem associado ao belo, o mal ao
feio, exatamente os valores que forjaram o ideário da geração baby boom. O resultado disso são pessoas
formadas longe do relativismo estético e moral que impera hoje.
A partir de década de 1960 uma
mudança de hábitos e comportamentos sem precedentes impulsionou um giro de 180° nas formas de se conceber e produzir cultura popular. As manifestações
contra a guerra do Vietnã, o movimento hippie
e a influência arrebatadora da contracultura operaram uma revolução nas convenções sociais que não demoraria a se refletir na produção de entretenimento
infantil mais adiante.
A geração Y, já nascida sob a
onipresença da TV, parece ter sido a última a ter contato com a experiência
estética original dos desenhos animados. Produções como ThunderCats, Caverna do
Dragão e He-Man tinham por padrão claro a associação do Belo ao Bom e ao Justo.
Tanto os felinos alienígenas de Thundera, quanto os protegidos do Mestre dos
Magos e os príncipes de Eternia apresentam os traços físicos clássicos, homens
heroicos e musculosos (data vênia a Presto e Eric, é verdade) e mulheres
atléticas, numa ode à beleza como sinônimo e significado do Bem, do Heroísmo e
da Justiça.
Seguindo a mesma lógica, a múmia
decrépita Mum-Rá, o demônio de um chifre Vingador e o sádico Esqueleto
desempenham o papel psicopedagógico de, tal qual um Método Ludovico soft, fazer a audiência associar a
repulsa sensorial que suas imagens provocam a sua maldade e a seus atos moralmente
reprováveis. Animações como essas são verdadeiras plataformas de disseminação
em massa de virtudes. He-Man e sua irmã gêmea She-Ha chegam, inclusive, a trazer
reflexões morais e conselhos de vida ao fim de cada episódio, convertendo o
desenho numa formidável plataforma de educação lastreada na ética tradicional judaico-cristã.
Em seguida vieram as curtas-metragens
da Disney, da Warner Bros e da Hanna-Barbera, de teor mais leve e sem o mesmo
apelo heroico daquelas, mas ainda trazendo consigo o compromisso com o Belo, refletido
no primor estético e, principalmente, na trilha sonora das produções. Personagens
como Pernalonga, Marvin, Tom & Jerry e Pica-Pau, extremamente bem
desenhados e chamativos, foram o primeiro contato de uma geração inteira com a música
clássica. Era comum as crianças dos anos 90 e início dos 2000 passarem as
manhãs de sábado ouvindo o Pica-Pau cantar O
Barbeiro de Sevilha de Rossini, o Pernalonga tocando a Rapsódia Húngara n°
2 de Liszt e O Quebra Nozes de Tchaikovsky como trilha sonora das
perseguições de Tom a Jerry. Mais uma vez, o esmero que os cartunistas
despejavam em seus personagens servia de atrativo para a audiência à apreciação
da boa música.
Até o início dos anos 2000 a
maioria das animações seguiu mais ou menos a mesma linha. A partir de então, ficou
evidente uma série de mudanças na forma como as animações passaram a ser
produzidas. A mais imediata foi o abandono do padrão estético visual que
caracterizava as produções de outrora. Desenhos como Peppa Pig, Hey Arnold! e Du,
Dudu e Edu, começaram a trazer um traço esculhambado, passando mesmo a
impressão de que foram feitos de modo a induzir na audiência a sensação de que
ou a beleza passou a não mais importar, ou então que sua concepção tinha mudado radicalmente.
Para uma geração que cresceu acostumada ao primor visual de obras-primas como Darkwing Duck, Bonkers e Animaniacs, um
sinal de alerta se acendeu.
Além do desleixo proposital com a
estética, a dinâmica das tramas também tinha mudado. O desenho A Hora da Aventura, de 2010, é
sintomático do padrão que passou a vigorar. Ambientado num futuro
pós-apocalíptico mil anos após uma guerra nuclear, a produção acompanha as
aventuras do último humano e seu amigo cão num mundo devastado. A realidade nonsense em que circulam os personagens,
além do próprio traço desolado, quebram qualquer noção de ordem e beleza numa mente
em formação.
Não que desenhos bizarros ou com
temática absurda tenham sido
novidade até 2010. A diferença era o público-alvo: Rick and Morty, Beavis and Butt-Head e Ugly Americans nunca se pretenderam desenhos infantis, até porque
crianças em formação não teriam condições de absorver a temática que eles
abordam. Desse modo, qual o interesse em chamar de Guerra dos Cogumelos uma
hecatombe nuclear para adequar isso à capacidade de entendimento de uma criança
de oito anos?
Produções como A Hora da Aventura, cada vez mais comuns atualmente, refletem uma visão de mundo eivada de
niilismo e revolta contra a própria estrutura da realidade, onde os modelos de
heroísmo presentes em Os Super Patos
e SilverHawks ou a noção de ordem que
alicerça as tramas de Pole Position e
The Centurions simplesmente inexistem.
Se a concepção original de animação infantil sempre se baseou em acomodar no
imaginário do público-alvo os valores dos criadores, não é irreal pensar que a
intenção dos produtores dessa nova modalidade de entretenimento infantil seja
esvaziar o ideário da audiência de noções como senso de ordem, dever e
heroísmo.
A nova estética e o empenho em disseminar
essa visão perturbada de mundo tem como função imiscuir na mentalidade das crianças o mesmo desespero e o mesmo ódio à civilização que caracterizam a
doença de espírito endêmica nos meios difusores de cultura. A desilusão, típica
da pós-modernidade, com as chamadas metanarrativas que prometiam um Éden
secular sobre a face da Terra ensejou o contexto em que os desenhos que antes
refletiam os valores sadios da civilização ocidental, agora refletem o cansaço,
a loucura e a megalomania de engenheiros sociais sem escrúpulos buscando a todo
custo remodelar as sensibilidades das novas gerações.
Agora, personagens clássicos como
o Homem-Aranha ou o Capitão América de repente se declaram gays (como se
a componente sexual da experiência humana tivesse algum espaço num contexto onde tudo que importa é o
heroísmo) ou são representados como negros (como se o Lanterna Verde, o Blade, o Máquina
de Guerra e o Pantera Negra, já não fossem negros) apenas para estimular a
balcanização social objetivada pelas agendas identitárias. Muito mais que uma
simples alteração cosmética para aplacar os melindres totalitários dos
ressentidos politicamente corretos, quando, por exemplo, o Homem de Ferro se
torna uma mulher negra, sua identidade se perde. Se heróis com essas características são tão urgentes agora, por que não criar novos, ao invés de destruir os
existentes?
Como se já não bastasse o
festival de grosseria visual sem sentido que se apresenta como novidade, a
sanha devastadora dos perturbados ressentidos não poupou sequer os clássicos.
Na recente onda de remakes dos anos 80, de tudo que foi destruído, talvez os
exemplos mais reveladores sejam mesmo os dos já mencionados ThunderCats e She-Ha. O traço propositalmente
corrompido e a infantilização dos personagens refletem perfeitamente o estado
mental perturbado, revoltado e odiento de quem abdica voluntariamente da
satisfação de criar algo novo apenas pelo prazer mórbido de destruir. Gente
doente e morta por dentro, vampiros ideológicos que se recusam a crescer e vivem numa espécie de paranoia autista apartada
da realidade, se apresenta agora para lutar pelo imaginário das próximas gerações.
Quando se observa as sensações
que uma autêntica obra-prima como Cavalo de Fogo
desperta na audiência, com seu traço perfeito, sua história cativante que
remete aos cânones da mais alta cultura ocidental, e, principalmente, os
valores que dissemina, percebe-se como os desenhos animados se converteram na
arena de uma guerra cultural feroz pelo imaginário infantil. As animações
clássicas representam modelos de virtude que, apesar de inalcançáveis para a
maioria das pessoas, servem como algo saudável em que se inspirar.
Quando isso se perde, o resultado é esse ambiente insalubre de exaltação de youtuber, no qual as crianças param de mimetizar o paradigma do herói e passam a emular o comportamento histérico do afeminado de cabelo colorido com vocação para aliciador virtual de menores. Nada atesta melhor a situação deplorável da cultura atual do que os álbuns cujas figurinhas deixam de estampar os modelos de heroísmo e bravura dos desenhos animados para trazer fotos de animadores de mentecaptos negligenciados pelos pais.
Quem cresceu nos anos 1990, quando a cultura pop ainda não havia decaído ao nível de barbárie em que atualmente se encontra, teve a sorte de ouvir música clássica em Pica-Pau e Tom & Jerry, de se inspirar nos exemplos de heroísmo de TinTin e O Máskara (que, apesar da irreverência e do estilo anárquico, sempre se colocava do lado do Bem) e de se encantar com a beleza e a simplicidade inocente nos traços de Doug Funnie e Manda-Chuva. Isso ajudou a moldar a sensibilidade estética e a visão de mundo de toda uma geração. A intenção por trás dessa torrente de esgoto audiovisual a que ainda se dá o nome de desenhos animados é uma só: engenheiros sociais procurando remodelar gostos e sensações com propósitos políticos. Há uma guerra em curso pelo imaginário da próxima geração. Quem ignora o poder pedagógico de um bom desenho animado só pode esperar a derrota certa.
Ainda bem que quando garoto era "apaixonado" por Serena-Sailor Moon
ResponderExcluire Lucy-Rayearth ,o que me vacinou contra a posterior onda de feiura
estética e ideológica na animação americana.
Ao que parece, esse processo de degradação estética dos desenhos é um fenômeno estritamente ocidental. Não acho que desenhos japoneses se apliquem ao que escrevi (tanto é que não citei nenhum no texto). Eu conheço pouco da cultura japonesa mas as pessoas que conheço que acompanham animes e mangás me dizem que o mesmo não acontece por lá. Pelo jeito, os japoneses não estão tão obcecados em destruir a própria cultura quanto as elites culturais daqui.
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