“Eu
percebia claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal,
entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas,
deveria necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível”.
Michel
Houellebcq, Submissão
Nos quatro séculos (1583-1997) de história do empreendimento colonial britânico, poucas vezes o império esteve tão ameaçado quanto no motim de 1857. O estopim da revolta foi uma alteração no suprimento bélico do exército imperial indiano: os cartuchos de munição a partir de então seriam lubrificados com gordura animal. Como para usar o equipamento era necessário arrancar as pontas dos cartuchos com uma mordida, essa mudança acabou se configurando em algo intolerável para o grosso do contingente imperial no subcontinente: hindus, que nutrem devoção aos bovinos, e muçulmanos, para quem os suínos são considerados animais impuros.
Por
trás do que parece apenas um exotismo religioso se escondia um turbilhão de
outras razões que explicam porque a alteração nas munições foi apenas a fagulha
no rastilho de pólvora. O início de tudo remete à mudança do controle sobre a
atividade missionária britânica na Índia.
Desde
1600 a Companhia das Índias Orientais detinha o monopólio da atividade
comercial britânica no subcontinente. Por entender que poderia afetar
negativamente os negócios, a política da organização era a de interferir o
mínimo possível na cultura local. Essa postura, tomada principalmente por
pragmatismo, desenvolveu uma relação exclusivamente comercial, logo, de
tolerância, entre britânicos e indianos. A companhia tinha por padrão impor
severa restrição sobre a atividade missionária na Índia, proibindo, inclusive,
os capelães da própria organização de tentar converter os nativos e
restringindo a entrada de missionários no país.
Esse
ambiente ameno duraria até 1813. Aproveitando-se da renovação do estatuto da
companhia, a seita de Claphan, grupo de pressão protestante cuja atuação foi
decisiva no sentido de influenciar a Marinha Real a bloquear o tráfego de
escravos pelo Atlântico, empregou seu crescente poder de lobby junto à metrópole para remover as restrições da organização
de comércio sobre a liberdade de atuação dos missionários.
Havia,
naturalmente, a convicção dos evangelizadores acerca da superioridade de sua
religião e de sua civilização. Mas havia também certos aspectos da cultura indiana
que, se não justificavam ingerência nos costumes locais, pelo menos despertavam
preocupação sobre a condição de alguns grupos naquela sociedade.
O
tratamento recebido pelos párias no sistema de castas, a prática de
infanticídio feminino, o thagi/thugee (uma
espécie de culto a sacerdotes-assassinos que estrangulavam viajantes
desavisados) e o sati (a imposição
social sobre viúvas hindus, que deviam se autoimolar nas piras funerárias dos
maridos), dentre outras, eram práticas e instituições que, sob
qualquer ponto de vista ancorado numa perspectiva cristã de dignidade humana,
despertariam ao menos um incômodo até no mais renitente relativista cultural.
Diante disso, o que fazer?
O
pragmatismo da Companhia foi abandonado em prol do ativismo cristão dos adeptos
da seita. Imbuídos de uma espécie de mentalidade de superioridade
civilizacional benevolente (bem refletida na condescendência algo racista que
transborda dos versos de O Fardo do Homem
Branco, de Rudyard Kipling), os novos missionários lançaram-se, então, à
tarefa de cristianizar a colônia. Enquanto vigorou a perspectiva meramente
comercial da Companhia no relacionamento da metrópole com a população nativa,
não houve registro de sublevação significativa na colônia. Após a mudança de
orientação, o império teve que lidar com a mais séria ameaça a sua hegemonia em
todo o período que permaneceu na Índia.
Na
contramão de qualquer perspectiva de ordem materialista, não foram as condições
de opressão a que estavam submetidos os indianos que causaram o levante de 1857,
muito menos o racismo praticamente onipresente entre a população britânica na
colônia. O que acendeu o rastilho de pólvora foi a tentativa de colonização
cultural. Foi a partir daí que o império passou a ter problemas na Índia.
Ao
se ver forçados por um poder imperial externo a abandonar suas tradições e
instituições, por mais deletérias que algumas fossem, até a disciplinada elite
do exército britânico, os sipais, se viram forçados a pegar em armas para
defender sua cultura. Foi exatamente a ingerência arrogante, condescendente e
paternalista do poder cristão sobre os costumes locais o que causou o levante
que mais ameaçou a dominação britânica na Ásia.
Um
movimento semelhante vem tomando forma na Europa Ocidental desde o último
pós-guerra. Diferentemente do caso indiano, onde a força invasora tinha
nacionalidade definida, religião e se baseava no poder de canhões e frotas de
guerra, no caso em questão, o poder imperial é cosmopolita, anti-cristão e se
baseia no poder financeiro e principalmente cultural das elites ateias que detêm
praticamente o monopólio dos meios de criação e difusão de cultura no Ocidente.
O primeiro era baseado em hard power. O
segundo, em soft power. As origens
desse novo imperialismo cultural remetem a instituições surgidas na Europa
continental depois de 1945.
O temor de uma Alemanha forte e industrializada de um
lado e de uma URSS em expansão de outro, levou a Europa Ocidental a buscar
meios de se defender em conjunto, de modo a contrapor as ameaças. Para lidar
com o imperialismo soviético, a decisão tomada foi se abrigar sob o
guarda-chuva atômico americano, o que levou à criação da OTAN. Com relação à
Alemanha, a solução foi a contenção econômica por meio da gestão conjunta das
reservas de carvão e aço do vale do Ruhr, o que resultou na criação da
Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Essa foi a pedra fundamental do
complexo burocrático transnacional que tomou posse da Europa não-soviética a
partir da segunda metade do século XX.
A
partir de então, um grupo de burocratas sem rosto, provenientes dos altos
escalões do funcionalismo público federal europeu, ensejou uma rede de
intrincados controles transnacionais com o objetivo de transferir
paulatinamente o poder de decisão dos executivos nacionais para órgãos
supranacionais, com ingerência crescente sobre os países membros. Para
fundamentar esse avanço sobre as instâncias de decisão dos países europeus e se
contrapor à perspectiva clássica de relação entre estados soberanos, duas alternativas
foram propostas.
A
primeira, mais radical, dava conta de propor a chamada Europa das repartições, um
arranjo no qual a autoridade executiva das nações europeias simplesmente
repousaria sobre um corpo de burocratas sem voto acantonados num órgão
supranacional. O que foi concebido sob a alcunha de Alta Autoridade da CECA,
acabou se tornando o que se conhece hoje por Comissão Europeia, um órgão não
eleito dotado de poder executivo e que acumula também a função legislativa de
propor leis (ao legislativo da UE cabe apenas votar as proposições da Comissão
e auditar o orçamento). Não fosse a megalomania arrogante de burocratas
sedentos por poder como Walter Hallstein, primeiro presidente da Alta
Autoridade/Comissão Europeia, que, em visita aos EUA em 1965, chegou a se
afirmar “uma espécie de primeiro-ministro da Europa¹”, ou o voluntarismo
pretensioso que, em 22 de março do mesmo ano, o levou a, tal qual um chefe de
executivo em exercício, anunciar um pacote de propostas antes de submeter à apreciação dos estados-membros², a chamada
perspectiva federalista poderia ter logrado êxito.
Além
da vaidade e da mania de grandeza de personagens obscuros abrigados na penumbra
das burocracias estatais européias, também pesou a ação de políticos europeus
da velha guarda. Winston Churchill foi o primeiro a fazer resistência explícita
a esse projeto de poder total. Ao se opor, em 1951-2, à idéia de um exército
europeu, ele disse que, ao invés de um monólito transnacional sob o estandarte
da OTAN, preferia “ver (...) fortes exércitos nacionais marchando juntos na
defesa da liberdade e cantando seus hinos nacionais ”³. Provando que, pelo
menos à época, a questão da soberania britânica superava as desavenças políticas,
Clement Atlee, seu sucessor trabalhista, foi um pouco menos polido: “órgão
irresponsável, nomeado por ninguém e sem responder a ninguém”⁴.
Charles
De Gaulle, que, com precisão cirúrgica, definiu a Comissão como “um corpo
qualquer de sábios, tecnocrático, apátrida e irresponsável”⁵, chegou a arriscar uma
reeleição dada como certa em disputa contra um François Miterrand que
convenientemente se pintou como o candidato pró-Europa ao Palácio do Eliseu: o
herói de guerra teve que abrandar suas imprecações contra o projeto totalitário
dos funcionários públicos de carreira, ao ver o poderosíssimo lobby do setor
agrícola francês ser convencido por seu rival de que seus subsídios estariam
ameaçados em caso de reeleição de seu presidente eurocético.
Margareth
Thatcher foi outra que preferiu ver sua carreira política se esvair pelo ralo a
tomar parte no projeto de assassinato europeu do estado-nação. Sua invectiva é
bem conhecida, em tradução livre: “Não conseguimos retroceder com sucesso as
fronteiras do estado na Grã-Bretanha, apenas para vê-las reimpostas a nível
europeu com um superestado europeu exercendo um novo domínio de Bruxelas”. Foi
a única dentre os doze chefes de estado na Cúpula de Roma em 1990 a rejeitar os
termos da UE para a união monetária e política, materializados à perfeição na
loucura megalômana do então presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors.
Nas palavras da própria Thatcher: “O (...) Sr. Delors (...) afirmou querer que
o Parlamento Europeu se tornasse o corpo democrático da Comunidade, que a
Comissão se tornasse o Executivo e que o Conselho Ministerial se tornasse o
Senado. Não! Não! Não!”⁶.
Traída por seu até então braço direito Geoffrey Howe, que pediu demissão do
cargo de vice-primeiro-ministro acusando-a de “isolar a Grã-Bretanha da
Europa”, teve que se aposentar vendo seus sucessores trabalhistas entregando a
soberania de seu Reino Unido numa bandeja de prata a Bruxelas.
Nigel
Farage foi só o último representante dessa linhagem de políticos britânicos
descendentes intelectuais dos barões de terra que colocaram limites em João Sem
Terra em 1215. Não por acaso, foi ele quem jogou a pá de cal sobre as pretensões
dos tiranetes sem rosto de Bruxelas sobre a terra da rainha.
É
por causa deles que a ilha sempre foi a principal pedra no sapato das criaturas
do pântano das repartições pública do continente. Com a notável exceção do
herói de guerra francês, a Grã-Bretanha foi o único país de importância de onde
saíram políticos de projeção que realmente se opuseram ao projeto de dominação
do continente por funcionários públicos sem rosto e sem voto. Imbuídos da
crença progressista de que o mundo caminha necessariamente para o fim do
estado-nação, a maioria esmagadora dos políticos de expressão do continente
era, de um modo ou outro, favorável ao projeto europeu.
As instituições europeias não combinavam com
as tradições democráticas britânicas. No entender dos ingleses, apenas uma zona
europeia de livre comércio, sem tarifa exterior comum, era aceitável. Isso
explica tanto a adesão tardia do Reino Unido ao empreendimento (1974) quanto o
fato de o país ter sido o único a se recusar a trocar sua moeda pelo euro. Explica
também a segunda alternativa à concepção clássica de relação entre os estados
que, diferentemente da Europa federal dos burocratas de Bruxelas, logrou êxito
na UE.
A
defesa do federalismo europeu é baseada na crença equivocada de que foram as
identidades nacionais que causaram as tragédias que se abateram sobre o
continente na primeira metade do século XX. Isso é conveniente a quem deseja o
enfraquecimento do estado-nação e a concentração de poder total sob instâncias
supranacionais opacas, de modo a solapar, assim, as soberanias nacionais.
Qualquer observador com um mínimo de bom senso e honestidade intelectual
detecta nos projetos imperiais a origem das duas grandes guerras.
Antes
ainda delas, em 1870, França e Alemanha se engalfinhavam por mercados
consumidores, matérias-primas e territórios para controlar. Seguindo a mesma
linha de Bismarck, 1914 foi ocasionado pelo projeto expansionista de Wilhelm
II. A Polônia foi invadida em 1939 por um Terceiro Reich que reivindicava um Lebesnraum. Mesmo após Hiroshima, as
pretensões globais do império soviético continuaram dando o tom dos conflitos
até a queda do muro: Coreia em 1950, Vietnã em 1963, Afeganistão em 1982... todos
esses conflitos foram causados por agressões decorrentes do imperialismo
comunista, seja chinês, seja soviético, em busca de território.
A
desculpa padrão para se dissolver culturas inteiras num melting pot identitário, portanto, simplesmente não procede. Se
isso tivesse respaldo na realidade, governos eurocéticos como os de países como
Hungria, Polônia, Áustria ou até mesmo o próprio Reino Unido, seriam causas de
instabilidade na Europa e simplesmente isso não ocorre.
Assim
sendo, diante das resistências empreendidas principalmente pela Grã-Bretanha, o
projeto europeu teve que se contentar com a chamada “esfera intermediária” de
membros, na qual o poder real não recai mais na Comissão Europeia, mas no Conselho
Europeu, o equivalente a uma câmara alta supranacional, onde os chefes do
executivo se reúnem periodicamente. Esse é o centro de gravidade do poder na
Europa.
A
forma como o alto funcionalismo dos países da Europa Ocidental se mancomunou de
modo a ensejar a burocracia intestina que praticamente anulou as soberanias
nacionais é sintomática da nova forma de organização política que tenta se
impor como legítima a partir do consenso. Há cem anos era impensável que algum
país pensasse em abdicar voluntariamente de sua soberania. Hoje isso é visto
como uma marca do progresso, um passo da humanidade em direção à utopia
kantiana da paz perpétua.
É
esse sentimento que dá forma à UE. É dele que se servem os burocratas obscuros
para justificar sua pretensão de poder absoluto, ancorada na promessa de “paz”
que só um mundo uniformizado à força e totalmente controlado pode oferecer. As
invectivas dos políticos de carreira europeus contra tudo que simbolize as
unidades nacionais, materializadas à perfeição na forma como Angela Merkel,
visivelmente enojada, esconde uma bandeira
alemã num evento em Berlim, têm raiz tanto na crença
equivocada de que o nacionalismo é o motor por trás da devastação do século XX
quanto na idéia de que a paz só é possível num arranjo onde o concerto de
nações de Metternich e Talleyrand não tem mais instrumentos.
É
justamente essa mentalidade, que se embrenhou nas consciências dos políticos
mais proeminentes da cena internacional, o que se dá o nome de globalismo. Quando se diz que “problemas globais exigem
soluções globais”, quando se insiste tanto em “governança global”, quando a
rejeição ao conceito de estado-nação se torna praticamente um imperativo
categórico, se está diante do ferramental retórico praticamente onipresente na
mídia de massa, na academia e nos altos escalões da política internacional a
justificar a concentração de poder global em meio ao cipoal burocrático de
instituições multilaterais apinhadas de burocratas sem rosto. Por trás de
justificativas nobres como a “manutenção da paz internacional” e a “preservação
do meio ambiente” se esconde o desejo de concentração de poder sem o incômodo
da obrigação da prestação de contas.
O
projeto global europeu conta com o apoio das gerações mais novas. Seduzidas
pelo assistencialismo europeu e naturalmente suscetíveis ao canto da sereia
centralizador que exige controle político em troca da sensação de segurança que
o estado de bem-estar social é tão eficiente em proporcionar, as parcelas mais
jovens da população europeia se posicionaram fortemente contra o Brexit.
Produto principalmente de um sistema educacional voltado à disseminação dos
valores “progressistas” que tomaram de assalto a cultura europeia nos últimos
dois séculos, essa mentalidade é resultado, também, da ação da fenomenal máquina
de propaganda anticristã, surgida no iluminismo francês, que tem por propósito
principal remodelar a sociedade européia segundo um paradigma secular, onde a
componente transcendente da existência humana, resguardada pela religião, é
suprimida em benefício da espiritualidade ecumênica que o projeto global europeu
busca implantar bionicamente nas consciências dos cidadãos.
Ocorre
que não existe vácuo de poder nem vácuo de cultura. Diante de uma sociedade ideologicamente
enfraquecida, numericamente inferior e forjada no culto ao prazer que encara a
maternidade como uma maldição e os filhos como empecilhos a um projeto
materialista de “felicidade” pessoal, outra cultura com mais senso de propósito
e transcendência e longe do materialismo hedonista da civilização do conforto tende
a prosperar.
A
investida das comunidades muçulmanas na Europa mostra como, a não ser que as
elites globais sejam bem sucedidas em cooptar os muçulmanos pelo conforto e
pelo prazer como fizeram com os cristãos, o destino da Europa será um califado
regido com mão de ferro pelos imigrantes do oriente médio e do magreb. A não ser que se converta
chechenos, árabes e magrebinos em Malalas
Yousafzais a discutir como adequar aborto, ideologia de gênero e uso de
drogas ao Corão e às Hadiths num chá da tarde com a beautiful people hollywoodiana, o destino da Europa é perecer sob a
“paz” do Profeta.
Depois
de a Revolução Francesa e o Iluminismo terem feito o trabalho pesado de descristianizar
os europeus e prepará-los para rejeitar suas tradições, sua cultura e seu
passado, pavimentando, assim o caminho para as elites culturais e financeiras
anticristãs conseguirem impor seus valores bionicamente, Bruxelas e Maastricht não
tiveram que lidar com o que lidou o império britânico na Índia. Nada indica que
terão a mesma facilidade com os sarracenos.
1 – Walter Hallstein, mar. 1965. Em: John Newhouse, Collision in Brussels. The
Commom Market Crisis of 30 June 1965.
2 – Luuk van
Middelaar, Europa em Transição: Como um Continente
se Transformou em União, pg. 111.
3- Dean Acheson, Present
at the Creation.
4 – Clemente
Atlee. Em: Paul Van de Meerssche, De
Europese Integratie, 1945-1970.
5
– Charles De
Gaulle, 9 set. 1965. Em: Charles De Gaulle, op. Cit., 1994, p. 931-932.
6 –
Margareth Thatcher. Em: Hansard, 30
out. 1990, col. 873.
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