segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Origem do Globalismo na União Européia


 

“Eu percebia claramente, e fazia anos, que a distância crescente, agora abissal, entre a população e os que falavam em seu nome, políticos e jornalistas, deveria necessariamente levar a algo caótico, violento e imprevisível”.

Michel Houellebcq, Submissão

Nos quatro séculos (1583-1997) de história do empreendimento colonial britânico, poucas vezes o império esteve tão ameaçado quanto no motim de 1857. O estopim da revolta foi uma alteração no suprimento bélico do exército imperial indiano: os cartuchos de munição a partir de então seriam lubrificados com gordura animal. Como para usar o equipamento era necessário arrancar as pontas dos cartuchos com uma mordida, essa mudança acabou se configurando em algo intolerável para o grosso do contingente imperial no subcontinente: hindus, que nutrem devoção aos bovinos, e muçulmanos, para quem os suínos são considerados animais impuros.

Por trás do que parece apenas um exotismo religioso se escondia um turbilhão de outras razões que explicam porque a alteração nas munições foi apenas a fagulha no rastilho de pólvora. O início de tudo remete à mudança do controle sobre a atividade missionária britânica na Índia.

Desde 1600 a Companhia das Índias Orientais detinha o monopólio da atividade comercial britânica no subcontinente. Por entender que poderia afetar negativamente os negócios, a política da organização era a de interferir o mínimo possível na cultura local. Essa postura, tomada principalmente por pragmatismo, desenvolveu uma relação exclusivamente comercial, logo, de tolerância, entre britânicos e indianos. A companhia tinha por padrão impor severa restrição sobre a atividade missionária na Índia, proibindo, inclusive, os capelães da própria organização de tentar converter os nativos e restringindo a entrada de missionários no país.

Esse ambiente ameno duraria até 1813. Aproveitando-se da renovação do estatuto da companhia, a seita de Claphan, grupo de pressão protestante cuja atuação foi decisiva no sentido de influenciar a Marinha Real a bloquear o tráfego de escravos pelo Atlântico, empregou seu crescente poder de lobby junto à metrópole para remover as restrições da organização de comércio sobre a liberdade de atuação dos missionários.

Havia, naturalmente, a convicção dos evangelizadores acerca da superioridade de sua religião e de sua civilização. Mas havia também certos aspectos da cultura indiana que, se não justificavam ingerência nos costumes locais, pelo menos despertavam preocupação sobre a condição de alguns grupos naquela sociedade.

O tratamento recebido pelos párias no sistema de castas, a prática de infanticídio feminino, o thagi/thugee (uma espécie de culto a sacerdotes-assassinos que estrangulavam viajantes desavisados) e o sati (a imposição social sobre viúvas hindus, que deviam se autoimolar nas piras funerárias dos maridos), dentre outras, eram práticas e instituições que, sob qualquer ponto de vista ancorado numa perspectiva cristã de dignidade humana, despertariam ao menos um incômodo até no mais renitente relativista cultural. Diante disso, o que fazer?

O pragmatismo da Companhia foi abandonado em prol do ativismo cristão dos adeptos da seita. Imbuídos de uma espécie de mentalidade de superioridade civilizacional benevolente (bem refletida na condescendência algo racista que transborda dos versos de O Fardo do Homem Branco, de Rudyard Kipling), os novos missionários lançaram-se, então, à tarefa de cristianizar a colônia. Enquanto vigorou a perspectiva meramente comercial da Companhia no relacionamento da metrópole com a população nativa, não houve registro de sublevação significativa na colônia. Após a mudança de orientação, o império teve que lidar com a mais séria ameaça a sua hegemonia em todo o período que permaneceu na Índia.

Na contramão de qualquer perspectiva de ordem materialista, não foram as condições de opressão a que estavam submetidos os indianos que causaram o levante de 1857, muito menos o racismo praticamente onipresente entre a população britânica na colônia. O que acendeu o rastilho de pólvora foi a tentativa de colonização cultural. Foi a partir daí que o império passou a ter problemas na Índia.

Ao se ver forçados por um poder imperial externo a abandonar suas tradições e instituições, por mais deletérias que algumas fossem, até a disciplinada elite do exército britânico, os sipais, se viram forçados a pegar em armas para defender sua cultura. Foi exatamente a ingerência arrogante, condescendente e paternalista do poder cristão sobre os costumes locais o que causou o levante que mais ameaçou a dominação britânica na Ásia.

Um movimento semelhante vem tomando forma na Europa Ocidental desde o último pós-guerra. Diferentemente do caso indiano, onde a força invasora tinha nacionalidade definida, religião e se baseava no poder de canhões e frotas de guerra, no caso em questão, o poder imperial é cosmopolita, anti-cristão e se baseia no poder financeiro e principalmente cultural das elites ateias que detêm praticamente o monopólio dos meios de criação e difusão de cultura no Ocidente. O primeiro era baseado em hard power. O segundo, em soft power. As origens desse novo imperialismo cultural remetem a instituições surgidas na Europa continental depois de 1945.

            O temor de uma Alemanha forte e industrializada de um lado e de uma URSS em expansão de outro, levou a Europa Ocidental a buscar meios de se defender em conjunto, de modo a contrapor as ameaças. Para lidar com o imperialismo soviético, a decisão tomada foi se abrigar sob o guarda-chuva atômico americano, o que levou à criação da OTAN. Com relação à Alemanha, a solução foi a contenção econômica por meio da gestão conjunta das reservas de carvão e aço do vale do Ruhr, o que resultou na criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Essa foi a pedra fundamental do complexo burocrático transnacional que tomou posse da Europa não-soviética a partir da segunda metade do século XX.

A partir de então, um grupo de burocratas sem rosto, provenientes dos altos escalões do funcionalismo público federal europeu, ensejou uma rede de intrincados controles transnacionais com o objetivo de transferir paulatinamente o poder de decisão dos executivos nacionais para órgãos supranacionais, com ingerência crescente sobre os países membros. Para fundamentar esse avanço sobre as instâncias de decisão dos países europeus e se contrapor à perspectiva clássica de relação entre estados soberanos, duas alternativas foram propostas.

A primeira, mais radical, dava conta de propor a chamada Europa das repartições, um arranjo no qual a autoridade executiva das nações europeias simplesmente repousaria sobre um corpo de burocratas sem voto acantonados num órgão supranacional. O que foi concebido sob a alcunha de Alta Autoridade da CECA, acabou se tornando o que se conhece hoje por Comissão Europeia, um órgão não eleito dotado de poder executivo e que acumula também a função legislativa de propor leis (ao legislativo da UE cabe apenas votar as proposições da Comissão e auditar o orçamento). Não fosse a megalomania arrogante de burocratas sedentos por poder como Walter Hallstein, primeiro presidente da Alta Autoridade/Comissão Europeia, que, em visita aos EUA em 1965, chegou a se afirmar “uma espécie de primeiro-ministro da Europa¹”, ou o voluntarismo pretensioso que, em 22 de março do mesmo ano, o levou a, tal qual um chefe de executivo em exercício, anunciar um pacote de propostas antes de submeter à apreciação dos estados-membros², a chamada perspectiva federalista poderia ter logrado êxito.

Além da vaidade e da mania de grandeza de personagens obscuros abrigados na penumbra das burocracias estatais européias, também pesou a ação de políticos europeus da velha guarda. Winston Churchill foi o primeiro a fazer resistência explícita a esse projeto de poder total. Ao se opor, em 1951-2, à idéia de um exército europeu, ele disse que, ao invés de um monólito transnacional sob o estandarte da OTAN, preferia “ver (...) fortes exércitos nacionais marchando juntos na defesa da liberdade e cantando seus hinos nacionais ”³. Provando que, pelo menos à época, a questão da soberania britânica superava as desavenças políticas, Clement Atlee, seu sucessor trabalhista, foi um pouco menos polido: “órgão irresponsável, nomeado por ninguém e sem responder a ninguém”.

Charles De Gaulle, que, com precisão cirúrgica, definiu a Comissão como “um corpo qualquer de sábios, tecnocrático, apátrida e irresponsável”, chegou a arriscar uma reeleição dada como certa em disputa contra um François Miterrand que convenientemente se pintou como o candidato pró-Europa ao Palácio do Eliseu: o herói de guerra teve que abrandar suas imprecações contra o projeto totalitário dos funcionários públicos de carreira, ao ver o poderosíssimo lobby do setor agrícola francês ser convencido por seu rival de que seus subsídios estariam ameaçados em caso de reeleição de seu presidente eurocético.

Margareth Thatcher foi outra que preferiu ver sua carreira política se esvair pelo ralo a tomar parte no projeto de assassinato europeu do estado-nação. Sua invectiva é bem conhecida, em tradução livre: “Não conseguimos retroceder com sucesso as fronteiras do estado na Grã-Bretanha, apenas para vê-las reimpostas a nível europeu com um superestado europeu exercendo um novo domínio de Bruxelas”. Foi a única dentre os doze chefes de estado na Cúpula de Roma em 1990 a rejeitar os termos da UE para a união monetária e política, materializados à perfeição na loucura megalômana do então presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors. Nas palavras da própria Thatcher: “O (...) Sr. Delors (...) afirmou querer que o Parlamento Europeu se tornasse o corpo democrático da Comunidade, que a Comissão se tornasse o Executivo e que o Conselho Ministerial se tornasse o Senado. Não! Não! Não!”. Traída por seu até então braço direito Geoffrey Howe, que pediu demissão do cargo de vice-primeiro-ministro acusando-a de “isolar a Grã-Bretanha da Europa”, teve que se aposentar vendo seus sucessores trabalhistas entregando a soberania de seu Reino Unido numa bandeja de prata a Bruxelas.

Nigel Farage foi só o último representante dessa linhagem de políticos britânicos descendentes intelectuais dos barões de terra que colocaram limites em João Sem Terra em 1215. Não por acaso, foi ele quem jogou a pá de cal sobre as pretensões dos tiranetes sem rosto de Bruxelas sobre a terra da rainha.

É por causa deles que a ilha sempre foi a principal pedra no sapato das criaturas do pântano das repartições pública do continente. Com a notável exceção do herói de guerra francês, a Grã-Bretanha foi o único país de importância de onde saíram políticos de projeção que realmente se opuseram ao projeto de dominação do continente por funcionários públicos sem rosto e sem voto. Imbuídos da crença progressista de que o mundo caminha necessariamente para o fim do estado-nação, a maioria esmagadora dos políticos de expressão do continente era, de um modo ou outro, favorável ao projeto europeu.

 As instituições europeias não combinavam com as tradições democráticas britânicas. No entender dos ingleses, apenas uma zona europeia de livre comércio, sem tarifa exterior comum, era aceitável. Isso explica tanto a adesão tardia do Reino Unido ao empreendimento (1974) quanto o fato de o país ter sido o único a se recusar a trocar sua moeda pelo euro. Explica também a segunda alternativa à concepção clássica de relação entre os estados que, diferentemente da Europa federal dos burocratas de Bruxelas, logrou êxito na UE.

A defesa do federalismo europeu é baseada na crença equivocada de que foram as identidades nacionais que causaram as tragédias que se abateram sobre o continente na primeira metade do século XX. Isso é conveniente a quem deseja o enfraquecimento do estado-nação e a concentração de poder total sob instâncias supranacionais opacas, de modo a solapar, assim, as soberanias nacionais. Qualquer observador com um mínimo de bom senso e honestidade intelectual detecta nos projetos imperiais a origem das duas grandes guerras.

Antes ainda delas, em 1870, França e Alemanha se engalfinhavam por mercados consumidores, matérias-primas e territórios para controlar. Seguindo a mesma linha de Bismarck, 1914 foi ocasionado pelo projeto expansionista de Wilhelm II. A Polônia foi invadida em 1939 por um Terceiro Reich que reivindicava um Lebesnraum. Mesmo após Hiroshima, as pretensões globais do império soviético continuaram dando o tom dos conflitos até a queda do muro: Coreia em 1950, Vietnã em 1963, Afeganistão em 1982... todos esses conflitos foram causados por agressões decorrentes do imperialismo comunista, seja chinês, seja soviético, em busca de território.

A desculpa padrão para se dissolver culturas inteiras num melting pot identitário, portanto, simplesmente não procede. Se isso tivesse respaldo na realidade, governos eurocéticos como os de países como Hungria, Polônia, Áustria ou até mesmo o próprio Reino Unido, seriam causas de instabilidade na Europa e simplesmente isso não ocorre.

Assim sendo, diante das resistências empreendidas principalmente pela Grã-Bretanha, o projeto europeu teve que se contentar com a chamada “esfera intermediária” de membros, na qual o poder real não recai mais na Comissão Europeia, mas no Conselho Europeu, o equivalente a uma câmara alta supranacional, onde os chefes do executivo se reúnem periodicamente. Esse é o centro de gravidade do poder na Europa.

A forma como o alto funcionalismo dos países da Europa Ocidental se mancomunou de modo a ensejar a burocracia intestina que praticamente anulou as soberanias nacionais é sintomática da nova forma de organização política que tenta se impor como legítima a partir do consenso. Há cem anos era impensável que algum país pensasse em abdicar voluntariamente de sua soberania. Hoje isso é visto como uma marca do progresso, um passo da humanidade em direção à utopia kantiana da paz perpétua.

É esse sentimento que dá forma à UE. É dele que se servem os burocratas obscuros para justificar sua pretensão de poder absoluto, ancorada na promessa de “paz” que só um mundo uniformizado à força e totalmente controlado pode oferecer. As invectivas dos políticos de carreira europeus contra tudo que simbolize as unidades nacionais, materializadas à perfeição na forma como Angela Merkel, visivelmente enojada, esconde uma bandeira alemã num evento em Berlim, têm raiz tanto na crença equivocada de que o nacionalismo é o motor por trás da devastação do século XX quanto na idéia de que a paz só é possível num arranjo onde o concerto de nações de Metternich e Talleyrand não tem mais instrumentos.

É justamente essa mentalidade, que se embrenhou nas consciências dos políticos mais proeminentes da cena internacional, o que se dá o nome de globalismo.  Quando se diz que “problemas globais exigem soluções globais”, quando se insiste tanto em “governança global”, quando a rejeição ao conceito de estado-nação se torna praticamente um imperativo categórico, se está diante do ferramental retórico praticamente onipresente na mídia de massa, na academia e nos altos escalões da política internacional a justificar a concentração de poder global em meio ao cipoal burocrático de instituições multilaterais apinhadas de burocratas sem rosto. Por trás de justificativas nobres como a “manutenção da paz internacional” e a “preservação do meio ambiente” se esconde o desejo de concentração de poder sem o incômodo da obrigação da prestação de contas.

O projeto global europeu conta com o apoio das gerações mais novas. Seduzidas pelo assistencialismo europeu e naturalmente suscetíveis ao canto da sereia centralizador que exige controle político em troca da sensação de segurança que o estado de bem-estar social é tão eficiente em proporcionar, as parcelas mais jovens da população europeia se posicionaram fortemente contra o Brexit. Produto principalmente de um sistema educacional voltado à disseminação dos valores “progressistas” que tomaram de assalto a cultura europeia nos últimos dois séculos, essa mentalidade é resultado, também, da ação da fenomenal máquina de propaganda anticristã, surgida no iluminismo francês, que tem por propósito principal remodelar a sociedade européia segundo um paradigma secular, onde a componente transcendente da existência humana, resguardada pela religião, é suprimida em benefício da espiritualidade ecumênica que o projeto global europeu busca implantar bionicamente nas consciências dos cidadãos.

Ocorre que não existe vácuo de poder nem vácuo de cultura. Diante de uma sociedade ideologicamente enfraquecida, numericamente inferior e forjada no culto ao prazer que encara a maternidade como uma maldição e os filhos como empecilhos a um projeto materialista de “felicidade” pessoal, outra cultura com mais senso de propósito e transcendência e longe do materialismo hedonista da civilização do conforto tende a prosperar.

A investida das comunidades muçulmanas na Europa mostra como, a não ser que as elites globais sejam bem sucedidas em cooptar os muçulmanos pelo conforto e pelo prazer como fizeram com os cristãos, o destino da Europa será um califado regido com mão de ferro pelos imigrantes do oriente médio e do magreb. A não ser que se converta chechenos, árabes e magrebinos em Malalas Yousafzais a discutir como adequar aborto, ideologia de gênero e uso de drogas ao Corão e às Hadiths num chá da tarde com a beautiful people hollywoodiana, o destino da Europa é perecer sob a “paz” do Profeta.

Depois de a Revolução Francesa e o Iluminismo terem feito o trabalho pesado de descristianizar os europeus e prepará-los para rejeitar suas tradições, sua cultura e seu passado, pavimentando, assim o caminho para as elites culturais e financeiras anticristãs conseguirem impor seus valores bionicamente, Bruxelas e Maastricht não tiveram que lidar com o que lidou o império britânico na Índia. Nada indica que terão a mesma facilidade com os sarracenos.


1 – Walter Hallstein, mar. 1965. Em: John Newhouse, Collision in Brussels. The Commom Market Crisis of 30 June 1965.

2 – Luuk van Middelaar, Europa em Transição: Como um Continente se Transformou em União, pg. 111.

3- Dean Acheson, Present at the Creation. 

4 – Clemente Atlee. Em: Paul Van de Meerssche, De Europese Integratie, 1945-1970.

5 – Charles De Gaulle, 9 set. 1965. Em: Charles De Gaulle, op. Cit., 1994, p. 931-932.

6 – Margareth Thatcher. Em: Hansard, 30 out. 1990, col. 873.  

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