sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Do Desbunde ao Defunto: A Ressaca da Utopia



“Não estamos mais em 1967, Gemma. A vida já não é mais romântica e livre. Nada mais faz sentido. É tudo sujo e triste. E sabemos que isso só piora.”

O niilismo desolado na fala do moribundo Wayne Unser, ex-xerife da fictícia Charming, onde se passa a trama de Sons of Anarchy (SoA), é um retrato fidedigno do sentimento de desilusão que se apossou do imaginário popular ocidental quando as chamadas metanarrativas que prometiam um reino de paz e prosperidade sobre a terra, erguido sob os auspícios da técnica e longe da repressão moral do Cristianismo, se provaram não ser o Deus ex-machina em que os progressistas depositavam sua fé secular.

Como sua interlocutora, Unser é filho da geração de maio de 1968, a mesma que acreditava que a moral judaico-cristã e os costumes tradicionais eram tudo que impedia a humanidade de atingir o paraíso hedonista terreno. Muito mais que o desespero de alguém no fim da vida que cai em si e percebe o erro grosseiro de tudo em que sempre acreditou, a melancolia na fala de Wayne é a confissão do equívoco da ideologia hippie. 

A idéia de que o prazer seria a chave da libertação humana e a solução pra todos os seus problemas veio na esteira do fracasso das promessas do socialismo. A visão dos campos de morte soviéticos e das sociedades totalitárias que os sucessores de Lênin implantaram no leste europeu causaram um profundo exame de consciência nos adeptos do progressismo no Ocidente. Diante da impossibilidade de continuar defendendo aquilo como uma alternativa à “opressora” civilização judaico-cristã, seus inimigos se viram forçados a mudar de estratégia.

O que teve início com Gramsci e Lukács a detectar na cultura o calcanhar de Aquiles ocidental, recebeu impulso com os teóricos da Escola de Frankfurt que, fugidos do nazismo na Europa e acolhidos como reis pelos departamentos de humanidades das universidades americanas, afirmavam sem corar ser a sociedade que os acolheu pior que a de que fugiam. Por fim, ao difundir seu “faça amor, não faça guerra” Herbert Marcuse acabou por pavimentar o caminho que os inimigos do ocidente deveriam percorrer em seu intuito de destruição: o prazer é a resposta à pergunta de Lukács – “quem nos salvará da Civilização Ocidental?”

O esteio filosófico da ideologia hippie, da contracultura da década de 1960 e do maio de 1968 estava apresentado. E, como escreveu Andrew Fletcher, se a um homem é dado o poder de escrever as canções de um povo, ele não precisa se preocupar com quem faz as leis.

Por trás da fachada amigável da cultura pop dos anos 1960, com seus Beatles a cantar que All we need is love e com as flores e cores a brotar da guitarra paz e amor de Jimi Hendrix, se escondia o satanismo hedonista de Jim Morrison e a fúria homicida de Charles Manson a ver sua loucura racista refletida em Helter Skelter. O natural vazio existencial humano, outrora preenchido pelo Cristianismo e escancarado pelo abuso de sexo e drogas típico da “era paz e amor”, não tardaria em degenerar na pulsão de morte que faria do número 27 a maldição de toda uma geração: o que começou com a “rebeldia adolescente” sendo louvada em verso e prosa no cinema com James Dean, passando pela apologia às drogas e o culto ao prazer em Lucy in the Sky With Diamonds e (I can’t get no) Satisfaction, só poderia descambar no louvor doentio à morte que tomou de assalto a cultura jovem quando das mortes de Morrison, Joplin e Hendrix, todas aos 27 anos e por overdose. Daí ao glamour macabro sobre Sid Vicius e Nancy na década seguinte seria apenas conseqüência lógica.

Diante disso, nada mais restaria a alguém como Unser que não uma depressão ressentida e amargurada. As promessas de redenção pelo prazer se mostraram ineficientes em saciar a tão humana necessidade pelo transcendente da geração que achou que se refugiando no sexo e nas drogas e virando as costas ao passado encontraria o reino que a tradição cristã promete apenas post-mortem.

Quando se pensa em hippies drogados chafurdando na lama de Woodstock e se comportando como bonobos com o senso de superioridade moral de um Torquemada, a última coisa que vem à mente é a face oculta desse panorama. Por trás da sociedade alternativa de Raul Seixas e Paulo Coelho está a seita hippie de Charles Manson e, em SoA, a própria essência do clube de motociclistas.

A série começa com o jovem idealista Jax Teller curioso a pesquisar os escritos de seu falecido pai (John, o fundador do clube), ansioso por decidir sobre o rumo que deveria dar quando assumisse o cargo ocupado pelo amigo do pai, Clay Morrrow, o chefe do bando. Nem todo idealismo hippie que transborda das páginas datilografadas é suficiente para encobrir o rastro de crimes que Clay e Gemma, a mãe de Jax, vão deixando pelo caminho. É o senso de se sentir acima dos outros, conseqüência lógica do éthos narcisista da geração de 1968, o que faz esta última, inclusive, abater como gado a esposa de Jax, o transformando, definitivamente, no Charles Manson que estava destinado a ser. Não apenas pela natureza violenta da atuação do grupo, que transitava no linha tênue entre a legalidade e o crime, mas, principalmente e em primeiro lugar, pela ideologia hippie que permeou a intenção de John Teller ao fundá-lo.

Como acontece em qualquer moda ou onda de comportamento passageira, ao a aderir em massa ao “make Love, not war” de Marcuse, possibilitando, assim, o surgimento da atmosfera de libertinagem sexual e abuso de drogas tão característica da era do flower Power, as pessoas comuns dificilmente poderiam prever as conseqüências sociais da adoção irrefletida desse tipo de estilo de vida lascivo e inconseqüente em larga escala. Fora desse ambiente de vale-tudo hedonista, Charles Manson provavelmente não passasse de mais um bandido de rua, longe do poder que efetivamente exerceu como líder de seita.

De outra forma ele não teria influência para atrair e controlar os desajustados que evisceraram Sharon Tate (por ironia, outra adepta da tal ideologia do “amor livre”, como, aliás, todo o meio artístico da época e até hoje), muito menos para se tornar próximo de gente como Denis Wilson, baterista dos Beach Boys, e Terry Melcher, um dos principais figurões da indústria fonográfica da época.

Se não se valesse da cratera existencial que as promessas de redenção pelo prazer se provaram tão malsucedidas em preencher, dificilmente Manson poderia ter se alçado à condição de guru do lumpemproletariado a manipular completamente os dejetos humanos que integravam sua seita hippie, a ponto de os fazer acreditar em sua divindade. Uma sociedade só aceita Osho depois que abandona Jesus Cristo.

        É assim que se dá a inevitável conversão dos seguidores de Manson de “hippies pacíficos e tolerantes” nos tipos subumanos capazes de cometer o tipo de barbaridade que os levou à posteridade, o exato mecanismo psicológico que, por força da mesma ideologia hippie, foi deixando Jax cada vez mais violento, a ponto de assassinar a própria mãe no final da série e, logo em seguida, cometer suicídio: se as pessoas são constantemente estimuladas a agir como animais, elas se tornarão animais. Ninguém escapa da lógica de Nietzsche: Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha de volta. 


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