quinta-feira, 2 de junho de 2022

O Combate à Tradição

 


Na série Game of Thrones o Rei da Noite, vilão principal da trama, tem por objetivo dar cabo da vida de Brandon Stark, que fica paraplégico após uma tentativa de homicídio, vindo a se tornar o que chamam de Corvo de Três Olhos. Trata-se de um personagem místico que tem a capacidade de percorrer livremente a história de Westeros, resgatando fatos do passado e antecipando o futuro, de modo que nada que se passou lhe escapa. Ele se torna a própria Memória daquele mundo. 

De acordo com o próprio personagem, essa é a principal razão pela qual o Rei da Noite quer sua cabeça: interessado em apagar a existência da humanidade, impondo sobre ela uma Noite Sem Fim, o líder dos White Walkers precisa extinguir a herança cultural dos Sete Reinos, encarnada em Stark.

Um olhar mais atento sobre alguns produtos da cultura pop ocidental revela que essa é uma premissa recorrente em seus vilões. Tal qual o Deus do Antigo Testamento que inunda o mundo ou despeja fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra, muitos deles buscam, em alguma medida, uma forma de reiniciar o mundo na busca de melhorá-lo de algum modo (no que se diferenciam do Rei da Noite, cujo único objetivo é a extinção da humanidade): Darkseid e Lex Luthor procuram pela equação anti-vida, objetivando corrigir a desordem do mundo. O neomalthusiano Thanos enxerga na extinção aleatória de um terço da humanidade a única forma de impedir a completa destruição dos recursos naturais do planeta. Ozymandias arquiteta o extermínio de milhões em prol da paz mundial.

 E, como a vida imita a arte, em nome de “um mundo mais igualitário e sustentável”, Klaus Schwab celebra a pandemia do covid-19 como oportunidade de um great reset da vida em sociedade em escala global.

Talvez involuntariamente, isso reflete com perfeição o zeitgeist pretensioso e utópico que a modernidade trouxe à luz. A partir do momento em que a desordem do mundo se torna passível de solução por mãos humanas imbuídas da firmeza de propósito necessária e do conhecimento adequado, a humildade intelectual, que já foi a única postura sã diante do caráter anárquico da realidade e que sempre ensejou diante disso o tipo de resignação estóica tão comum nos tempos de outrora, deixa de fazer sentido.

E então, eis que a natureza humana e a realidade se impõem. Quando os grandiosos planos de mundo administrado vão por água abaixo, não sobra alternativa aos reformadores além do combate à única coisa que os forçaria a enfrentar as consequências de suas idéias: a memória, a realidade impressa no tempo. E, como bem alertou George Orwell, quem controla o passado (isto é, a memória de uma sociedade), controla o futuro. E quem controla o presente controla o passado.

O que se esconde por trás da revolta moderna contra a Tradição (ou seja, a Memória da civilização ocidental) é o objetivo dos White Walkers em Game of Thrones: a destruição completa da herança cultural deste mundo porque sabem, como bem alertou Samwel Tarly, que homens sem história não são muito mais do que cães, justamente os melhores animais para adestrar e controlar.

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