Na série Game of Thrones o Rei da Noite, vilão principal da trama, tem por objetivo dar cabo da vida de Brandon Stark, que fica paraplégico após uma tentativa de homicídio, vindo a se tornar o que chamam de Corvo de Três Olhos. Trata-se de um personagem místico que tem a capacidade de percorrer livremente a história de Westeros, resgatando fatos do passado e antecipando o futuro, de modo que nada que se passou lhe escapa. Ele se torna a própria Memória daquele mundo.
De acordo com o próprio
personagem, essa é a principal razão pela qual o Rei da Noite quer sua cabeça:
interessado em apagar a existência da humanidade, impondo sobre ela uma Noite Sem
Fim, o líder dos White Walkers
precisa extinguir a herança cultural dos Sete Reinos, encarnada em Stark.
Um olhar mais atento sobre alguns
produtos da cultura pop ocidental revela que essa é uma premissa recorrente em
seus vilões. Tal qual o Deus do Antigo Testamento que inunda o mundo ou despeja
fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra, muitos deles buscam, em alguma medida,
uma forma de reiniciar o mundo na busca de melhorá-lo de algum modo (no que se
diferenciam do Rei da Noite, cujo único objetivo é a extinção da humanidade): Darkseid
e Lex Luthor procuram pela equação anti-vida, objetivando corrigir a desordem
do mundo. O neomalthusiano Thanos enxerga na extinção aleatória de um terço da
humanidade a única forma de impedir a completa destruição dos recursos naturais
do planeta. Ozymandias arquiteta o extermínio de milhões em prol da paz mundial.
E, como a vida imita a arte, em nome de “um
mundo mais igualitário e sustentável”, Klaus Schwab celebra a pandemia do
covid-19 como oportunidade de um great
reset da vida em sociedade em escala global.
Talvez involuntariamente, isso reflete
com perfeição o zeitgeist pretensioso
e utópico que a modernidade trouxe à luz. A partir do momento em que a desordem
do mundo se torna passível de solução por mãos humanas imbuídas da firmeza de
propósito necessária e do conhecimento adequado, a humildade intelectual, que já
foi a única postura sã diante do caráter anárquico da realidade e que sempre
ensejou diante disso o tipo de resignação estóica tão comum nos tempos de
outrora, deixa de fazer sentido.
E então, eis que a natureza
humana e a realidade se impõem. Quando os grandiosos planos de mundo administrado
vão por água abaixo, não sobra alternativa aos reformadores além do combate à
única coisa que os forçaria a enfrentar as consequências de suas idéias: a
memória, a realidade impressa no tempo. E, como bem alertou George Orwell, quem controla o passado (isto é, a
memória de uma sociedade), controla o futuro. E quem controla o presente
controla o passado.
O que se esconde por
trás da revolta moderna contra a Tradição (ou seja, a Memória da civilização
ocidental) é o objetivo dos White Walkers
em Game of Thrones: a destruição
completa da herança cultural deste mundo porque sabem, como bem alertou Samwel
Tarly, que homens sem história não são muito mais do que cães, justamente os
melhores animais para adestrar e controlar.
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