sexta-feira, 27 de maio de 2022

O Teste Platônico


 

O fato de a realidade ser independente das percepções sensoriais humanas deveria ser suficiente para que ela fosse universalmente assimilada e interpretada da mesma forma. A experiência empírica, no entanto, não corrobora a tese, e isso por uma razão muito simples: a razão humana depende dos órgãos dos sentidos, que são frágeis e facilmente corruptíveis.

Há uma miríade de formas de enganar e turvar a ação dos sentidos: efeito de psicotrópicos, desgaste físico dos órgãos de captação e processamento dos dados da realidade, a ocorrência de condições ambientais específicas que induzem ao erro (ilusões de ótica e miragens) e, por incrível que pareça, a pressão social do entorno.

A título de exemplo, pode-se imaginar a situação em que alguém, sentado numa poltrona, de repente tem que lidar com uma procissão a, por algum motivo, dizer que a pessoa está, na verdade, acomodada sobre o dorso de um dragão de Komodo lilás com listras azul-petróleo. Por mais que o número de pessoas a repetir tal insanidade aumente em progressão geométrica e isso em nada altere a natureza do objeto em questão, dificilmente a pessoa sentada vai escapar do incômodo de questionar a própria sanidade.

Para alguém que, por algum motivo (seja político, seja de caráter) deseje escapar da tirania da realidade, pode ser tentador usar esse expediente para afirmar que aquela, ao invés de exterior e independente dos sentidos humanos, está dentro da cabeça de cada um. Possivelmente para fazer frente a isso e contrapor os relativistas de sua época, Platão desenvolveu sua teoria das Formas Universais, segundo a qual as causas materiais não são suficientes para interpretar adequadamente a realidade.

Trocando em miúdos, além da percepção dos sentidos (que, como já mencionado, pode ser facilmente comprometida), é necessário o conhecimento de um conjunto de características que são comuns a todo e qualquer elemento da realidade exterior (o chamado Universal), que o define e identifica para além de qualquer dúvida. É o que determina a qualidade genérica dos elementos de um conjunto de seres semelhantes. A própria sabedoria popular se encarregou de resumir com precisão o conceito: "Se abana o rabo feito cachorro, late feito cachorro e anda feito cachorro, então é cachorro!”. Isto é, a menos que se saiba o que é essencial num cachorro, nem a visão de todos os cachorros do mundo permite conhecer o que, de fato, é um cachorro.

Aplicando-se o teste platônico ao exemplo levantado no terceiro parágrafo, fica difícil tomar o lado da maioria. As características físicas da poltrona (o design ergonômico, os braços, o encosto, os pés, etc.) são radicalmente diferentes dos atributos que definem o animal. Em outras palavras, a existência das Formas Universais simplesmente inviabiliza a manipulação da realidade objetiva. Ao tornar os elementos exteriores à mente humana facilmente discerníveis para além de qualquer dúvida, a filosofia de Platão cimentou as bases de uma forma de conceber e interpretar o mundo fortemente ancorada na realidade tal qual ela é.

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