O fato de a realidade ser independente das percepções sensoriais humanas deveria ser suficiente para que ela fosse universalmente assimilada e interpretada da mesma forma. A experiência empírica, no entanto, não corrobora a tese, e isso por uma razão muito simples: a razão humana depende dos órgãos dos sentidos, que são frágeis e facilmente corruptíveis.
Há uma miríade de formas de
enganar e turvar a ação dos sentidos: efeito de psicotrópicos, desgaste físico
dos órgãos de captação e processamento dos dados da realidade, a ocorrência de condições
ambientais específicas que induzem ao erro (ilusões de ótica e miragens) e, por
incrível que pareça, a pressão social do entorno.
A título de exemplo, pode-se
imaginar a situação em que alguém, sentado numa poltrona, de repente tem que
lidar com uma procissão a, por algum motivo, dizer que a pessoa está, na
verdade, acomodada sobre o dorso de um dragão de Komodo lilás com listras azul-petróleo.
Por mais que o número de pessoas a repetir tal insanidade aumente em progressão
geométrica e isso em nada altere a natureza do objeto em questão, dificilmente
a pessoa sentada vai escapar do incômodo de questionar a própria sanidade.
Para alguém que, por algum motivo
(seja político, seja de caráter) deseje escapar da tirania da realidade, pode
ser tentador usar esse expediente para afirmar que aquela, ao invés de exterior
e independente dos sentidos humanos, está dentro da cabeça de cada um. Possivelmente
para fazer frente a isso e contrapor os relativistas de sua época, Platão
desenvolveu sua teoria das Formas Universais, segundo a qual as causas
materiais não são suficientes para interpretar adequadamente a realidade.
Trocando em miúdos, além da
percepção dos sentidos (que, como já mencionado, pode ser facilmente
comprometida), é necessário o conhecimento de um conjunto de características
que são comuns a todo e qualquer elemento da realidade exterior (o chamado
Universal), que o define e identifica para além de qualquer dúvida. É o que
determina a qualidade genérica dos elementos de um conjunto de seres
semelhantes. A própria sabedoria popular se encarregou de resumir com precisão
o conceito: "Se abana o rabo feito cachorro, late feito cachorro e anda
feito cachorro, então é cachorro!”. Isto é, a menos que se saiba o que é
essencial num cachorro, nem a visão de todos os cachorros do mundo permite
conhecer o que, de fato, é um cachorro.
Aplicando-se o teste platônico ao
exemplo levantado no terceiro parágrafo, fica difícil tomar o lado da maioria.
As características físicas da poltrona (o design ergonômico, os braços, o
encosto, os pés, etc.) são radicalmente diferentes dos atributos que definem o
animal. Em outras palavras, a existência das Formas Universais simplesmente
inviabiliza a manipulação da realidade objetiva. Ao tornar os elementos
exteriores à mente humana facilmente discerníveis para além de qualquer dúvida,
a filosofia de Platão cimentou as bases de uma forma de conceber e interpretar
o mundo fortemente ancorada na realidade tal qual ela é.
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